AVESSO[1]
Dr. Raymundo Silveira - Médico e membro da SOBRAMES-CE |
Raymundo
Silveira[2]
AVESSO
De
olhos fechados, um estudante de medicina no final do primeiro ano deve estar
habilitado a introduzir dois dedos através de pequeno orifício no abdome de um
cadáver e retirar a vesícula biliar sem deixar vestígios em outros órgãos. Eu
estava. Do terceiro ao sexto, ajudei
professores de cirurgia a operar, quase diariamente. Daí em diante, eu mesmo
operava. Diariamente.
Tinha
pouco mais de quinze anos de formado, quando um colega me chamou, de repente,
para auxiliá-lo na remoção de um apêndice inflamado. O ato mais simples com que
um cirurgião se defronta. Manhã de domingo. Todo mundo de calção e maiô.
“Vocês
têm de esperar. Em quarenta e cinco minutos... uma hora, no máximo, iremos à
praia”.
Pedi
para examinar o doente e perguntei onde doía:
“Aqui,
doutor”.
Mas
o aqui dele era meio diferente dos aquis de quem sofre de apendicite aguda.
Um aqui que começava na boca do
estômago e se espalhava para baixo. Não é raro que a doença comece deste jeito.
Pelo contrário, é típico da fase inicial.
Nove
horas. Incisão de dois centímetros à direita do pé da barriga. Em regra,
mete-se uma pinça, puxa-se para fora um pouco de intestino, e o apêndice se
entrega: “Cá estou eu: o culpado; poupem
o meu pai, por favor; podem me levar.” O pai dele, claro, é o ceco. Mas não
foi o caso deste. Escondeu-se. Covarde. O tamanho do corte dobrou: quatro
centímetros. Procura, procura. Pinçava-se tudo, menos o que devia ser pinçado.
Inclusive o tempo, que escorregava mais do que nunca. Duas horas de intervenção,
sem que se interviesse em coisíssima nenhuma.
Terceiro
talho partindo de sob a costela mindinho veio se encontrar com os seus colegas
cá embaixo. Ganchos metálicos enganchados entre si repuxavam, para lados
opostos, tudo o que era mole. Agora se podia ver, pegar e até pôr para fora o
intestino grosso. Só que o ceco não aparecia. Meio-dia. Anestesista doido que
aquilo acabasse. Não só porque ele também queria a sua praia mas, sobretudo
pelo risco anestésico.
Meio-dia
e meia.
“Terminem
logo isso; se não encontram ceco é porque não tem...”.
“Onde
já se viu gente não ter ceco, cara?”
“Então achem logo; o paciente corre perigo”.
Uma
da tarde. Todos com os nervos debaixo da pele, uma vez que as nossas não tinham
flores, mas sapateando no tempo. Eu não tinha tomado café; engolia fome para
ela não aumentar ainda mais. Então, um espírito se aproximou e soprou no meu
ouvido: “manda ele fazer uma escuta no
coração”. Eu repassei o recado:
“Tão
mandando aqui tu fazer uma escuta no coração”.
“Mandando
o quê? Quem? Tá doido?”
“Faz,
homem de Deus, o quiéqui custa?”
Pois
foi! O espírito só podia ser o do Dr. Fritz. O sujeito tinha os bofes todos
trocados. Fazia mais de vinte e um anos que eu dissecava cadáveres ou operava,
e jamais tinha visto gente avessada. Coração para a direita, fígado para a
esquerda. Pulmão esquerdo capitalista, e o irmão dele, comunista. Passarinha na
posição do Garrincha, apêndice na extrema esquerda. Só quando se cortou deste
lado, o safado deu as caras. Ao terminar de retirá-lo e de coser todos os
rasgões úteis e inúteis, passava das duas e meia.
Naquele
domingo, a minha praia foi o fundo de uma rede de tucum armada no caramanchão
do quintal. De uma velha televisão em preto e branco, um filme de Hitchcock assistia ao meu cansaço e à minha
preguiça de viver...
Raymundo Silveira
1 Capítulo
do livro “LOUCA UMA OVA” – Prêmio Literário Para Autores Cearenses – 2010.
2 RAYMUNDO SILVEIRA é médico e escritor. Durante onze anos foi
membro do Conselho Editorial da Revista FEMINA, onde publicou artigos
científicos. Tem também trabalhos publicados em outras revistas e livros
médicos. Suas atividades na literatura convencional tiveram início com o
advento da Internet. É membro da SOBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos
Escritores). Em 2010 ganhou o Prêmio Literário Para Autores Cearenses, com o
livro de contos e crônicas: “Louca Uma Ova”. Em 2011 recebeu o Prêmio Nacional
de Conto e Poesia “Correio das Artes 60 Anos”, promovido pelo governo da
Paraíba, com o livro de contos “Lagartas-de-Vidro”. Foi um dos contemplados com
a Bolsa FUNARTE de Criação Literária – 2010, com o livro “Medicina Crônica”.
Com esta obra venceu o “Concurso Literário de Fortaleza”, no ano de 2012.
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