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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

POR RAYMUNDO SILVEIRA - AVESSO



AVESSO[1]


Dr. Raymundo Silveira - Médico e membro da SOBRAMES-CE

Raymundo Silveira[2]
AVESSO

De olhos fechados, um estudante de medicina no final do primeiro ano deve estar habilitado a introduzir dois dedos através de pequeno orifício no abdome de um cadáver e retirar a vesícula biliar sem deixar vestígios em outros órgãos. Eu estava.  Do terceiro ao sexto, ajudei professores de cirurgia a operar, quase diariamente. Daí em diante, eu mesmo operava. Diariamente.

Tinha pouco mais de quinze anos de formado, quando um colega me chamou, de repente, para auxiliá-lo na remoção de um apêndice inflamado. O ato mais simples com que um cirurgião se defronta. Manhã de domingo. Todo mundo de calção e maiô.

“Vocês têm de esperar. Em quarenta e cinco minutos... uma hora, no máximo, iremos à praia”.

Pedi para examinar o doente e perguntei onde doía:

“Aqui, doutor”.

Mas o aqui dele era meio diferente dos aquis de quem sofre de apendicite aguda. Um aqui que começava na boca do estômago e se espalhava para baixo. Não é raro que a doença comece deste jeito. Pelo contrário, é típico da fase inicial.

Nove horas. Incisão de dois centímetros à direita do pé da barriga. Em regra, mete-se uma pinça, puxa-se para fora um pouco de intestino, e o apêndice se entrega: “Cá estou eu: o culpado; poupem o meu pai, por favor; podem me levar.” O pai dele, claro, é o ceco. Mas não foi o caso deste. Escondeu-se. Covarde. O tamanho do corte dobrou: quatro centímetros. Procura, procura. Pinçava-se tudo, menos o que devia ser pinçado. Inclusive o tempo, que escorregava mais do que nunca. Duas horas de intervenção, sem que se interviesse em coisíssima nenhuma.

Terceiro talho partindo de sob a costela mindinho veio se encontrar com os seus colegas cá embaixo. Ganchos metálicos enganchados entre si repuxavam, para lados opostos, tudo o que era mole. Agora se podia ver, pegar e até pôr para fora o intestino grosso. Só que o ceco não aparecia. Meio-dia. Anestesista doido que aquilo acabasse. Não só porque ele também queria a sua praia mas, sobretudo pelo risco anestésico.

Meio-dia e meia.

“Terminem logo isso; se não encontram ceco é porque não tem...”.

“Onde já se viu gente não ter ceco, cara?”

 “Então achem logo; o paciente corre perigo”.

Uma da tarde. Todos com os nervos debaixo da pele, uma vez que as nossas não tinham flores, mas sapateando no tempo. Eu não tinha tomado café; engolia fome para ela não aumentar ainda mais. Então, um espírito se aproximou e soprou no meu ouvido: “manda ele fazer uma escuta no coração”. Eu repassei o recado:

“Tão mandando aqui tu fazer uma escuta no coração”.

“Mandando o quê? Quem? Tá doido?”

“Faz, homem de Deus, o quiéqui custa?”

Pois foi! O espírito só podia ser o do Dr. Fritz. O sujeito tinha os bofes todos trocados. Fazia mais de vinte e um anos que eu dissecava cadáveres ou operava, e jamais tinha visto gente avessada. Coração para a direita, fígado para a esquerda. Pulmão esquerdo capitalista, e o irmão dele, comunista. Passarinha na posição do Garrincha, apêndice na extrema esquerda. Só quando se cortou deste lado, o safado deu as caras. Ao terminar de retirá-lo e de coser todos os rasgões úteis e inúteis, passava das duas e meia.

Naquele domingo, a minha praia foi o fundo de uma rede de tucum armada no caramanchão do quintal. De uma velha televisão em preto e branco, um filme de Hitchcock assistia ao meu cansaço e à minha preguiça de viver...

                                                                        Raymundo Silveira



1  Capítulo do livro “LOUCA UMA OVA” – Prêmio Literário Para Autores Cearenses – 2010.


2  RAYMUNDO SILVEIRA é médico e escritor. Durante onze anos foi membro do Conselho Editorial da Revista FEMINA, onde publicou artigos científicos. Tem também trabalhos publicados em outras revistas e livros médicos. Suas atividades na literatura convencional tiveram início com o advento da Internet. É membro da SOBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores). Em 2010 ganhou o Prêmio Literário Para Autores Cearenses, com o livro de contos e crônicas: “Louca Uma Ova”. Em 2011 recebeu o Prêmio Nacional de Conto e Poesia “Correio das Artes 60 Anos”, promovido pelo governo da Paraíba, com o livro de contos “Lagartas-de-Vidro”. Foi um dos contemplados com a Bolsa FUNARTE de Criação Literária – 2010, com o livro “Medicina Crônica”. Com esta obra venceu o “Concurso Literário de Fortaleza”, no ano de 2012.

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