Entrei no
internato da faculdade de medicina da UFC, há 33 anos. Era um rito de passagem,
pois iríamos vestir branco, que era o traje habitual de todos os médicos na época,
simbolizando pureza e conhecimento aos que o usavam, assim como também
passaríamos a usar o estetoscópio, instrumento milenar de ausculta e
fundamental na semiologia do exame físico dos pacientes e detecção dos vários
sons emanados dos órgãos humanos, como coração, pulmão, intestinos e seus
significados clínicos.
Passaríamos também por cada serviço médico do
internato como cardiologia, clínica médica, doenças infecciosas e parasitárias,
endocrinologia, hematologia; estágio em interiores estaduais que eram os
Crutac. Nestes serviços entraríamos em contato direto com os pacientes, que
prescreveríamos diariamente, evoluiríamos diariamente, acompanharíamos os
exames clínicos, assim como os levaríamos até em outros nosocômios para
realizar avaliação propedêutica mais especializada, alheia ao serviço de origem.
Éramos supervisionados pelos chefes de serviço e professores,
assim como os médicos residentes do primeiro ano, R1, segundo ano, R2, terceiro
ano, R3 de clínica médica, que eram os que se especializariam na rainha das
especialidades e mãe da medicina baseada em evidências, a medicina interna.
Confesso que me apaixonei pela cardiologia no internato, a clínica cardiológica,
o exame físico, a propedêutica, as sessões conjuntas da cardiologia/ cirurgia
cardíaca e hemodinâmica, tornavam o ambiente mágico e estimulante.
Naquela época o serviço que mais despertava receio e ansiedade,
ela alta complexidade dos pacientes, pelo intenso trabalho diário, pelo drama
humano que suscitava, ela grande cobrança tutelada pelos professores e
residentes do serviço era a Hematologia. Quando avistávamos no final do longo
corredor do velho hospital Walter Cantídio, um professor para a realização da
visita diária, nosso coração estremecia, o sistema nervoso simpático
predominava através de palpitações, sudorese das mãos e uma quase taquipneia. Notadamente
na visita do Dr. Murilo Martins, para nós internos, um deus, para a comunidade
médica um" Schollar",livre docente, dono de sua cátedra, com especialização
nos Estados Unidos da América, e na época dono do estado da arte na hematologia,
conhecendo-a em profundidade e amplidão.
Ele sabia que éramos neófitos na arte médica, mas nos
cobrava o cuidado com os pacientes de sua enfermaria de maneira exemplar, nos perguntava
sobre os fármacos usados nas quimioterapias, da história e evolução dos pacientes,
dos resultados de seus exames recentes e das últimas alterações, assim como
traçava as novas condutas diariamente. Lembro-me perfeitamente dele naquela época,
com seu longo jaleco branco(que nem se usava ainda nos anos 90) um estetoscópio
de tubo amarelo, cabeleira lisa e grisalha indefectível, óculos escuros e cenho
sério, personalidade marcante, homem de poucos sorrisos, elegante e competentíssimo
e de vasto saber médico.
O serviço também abrigava uma jovem professora Dra.
chegada da França, a Dra. Clara Bastos, extremamente gentil, qualificadíssima e
competente e nosso querido Dr. Sílvio Furtado, que também ostentava grande
conhecimento hematológico foi um dos diretores do HUWC, além de nosso professor
querido. Prescrevíamos e evoluíamos nossos doentes avistando nos televisores
preto e branco do posto de enfermagem, a guerra do Golfo Pérsico, a primeira
beligerância humana transmitida ao vivo, com os mísseis Tomahawk americanos e
sua grande coalizão varrendo as linhas inimigas de Sadan Hussein do Kwait. Em
1998, em Washington DC, veria ao vivo esse míssil assim como todas as armas da
guerra fria no Museu Aeroespacial.
Na mesma época do internato em hematologia, minha avó
amada materna, começou a apresentar estranhas manchas escuras na pele, fez um
hemograma e este revelou uma contagem leucocitária exorbitante de 200.000
leucócitos, assim como células anormais denominadas blastos, o que configurava
uma possível "reação" leucemóide e uma neoplasia sanguínea de nome leucemia.
Foi orientada então a realizar uma punção medular chamada mielograma para
distinguir o tipo de patologia leucêmica envolvida e sua respectiva
classificação e estratégia de tratamento. O resultado foi uma leucemia mieloide
aguda mielomonocítica -M4.
Nessa época minha avó contava 72 anos e não possuía
nenhuma comorbidade. Foi rapidamente transferida ao HUWC e ficou sob os
cuidados da Dra. Clara Bastos, que a conduziu da melhor maneira possível, com competência
indescritível a acolheu com sua humanidade característica, traçando sua
estratégia quimioterapia de tratamento. Nós internos começávamos a nos
familiarizar com termos como: indução da remissão, consolidação da remissão e
finalmente remissão.
O último significava a vitória, nem que temporária
sobre o desastre celular incoordenado, a multiplicação patológica e ineficiente
das células neoplásicas e do intenso metabolismo energético consumptivo, além
das infecções oportunistas provocadas pela própria doença ou até pelo regime quimioterápico.
O tratamento tentava varrer de suas medulas e sangue as células leucêmicas, aplasiando
a medula óssea que daria lugar às células saudáveis. Essa fase era de grande
vulnerabilidade e o paciente era monitorado continuamente, principalmente quanto
à febre, sangramentos ou instabilidade cardiocirculatória.
O prognóstico de minha avó que tanto amei e que era
uma criatura santa que passou pela terra, por seu coração amoroso e gentileza e
carinho com todos, era reservado por sua idade e a classificação de sua leucemia
(LMA M4) que era extremamente agressiva e de difícil condução. Ela feneceu 50
dias após o diagnóstico, hoje sei ,de disfunção múltipla de órgãos e sistemas.
Sofri a perda duplamente pois a amava profundamente e estava passando pelo
serviço de hematologia, o que me provocou imenso peso emocional.
Essa mortalidade que a vitimou mudava a conformação de
nossa enfermaria todos os dias e semanas, com óbitos ceifando vidas de todas as
idades e sexo, de forma abrupta e por todas as consequências tanto da doença,
quanto do tratamento em si. Esse drama humano em sua finitude e sofrimento,
conhecendo os pacientes em seus anseios e esperanças, nunca esquecerei. São
lições que nos remetem à nossa limitação e pequenez, e nos fazem crer na
misericórdia divina espraiada em nossas existências. A Cardio-oncologia, por
definição é a especialidade que diagnostica, monitoriza o tratamento oncológico
durante e após o mesmo, assim como suas complicações, além de oferecer
estratégias preventivas para evitar tais complicações.
A Oncologia avançou de maneira vertical e abrangente
nestes últimos anos, há um arsenal terapêutico bem estabelecido para as
neoplasias sanguíneas e sólidas, mas há uma preocupação pertinente com as
complicações cardiovasculares inerentes a cada tipo de tratamento escolhido.
Hoje a doença neoplásica está em segundo lugar no mundo como causa de mortalidade.
Em nosso meio os cânceres em primeiro lugar são os prostáticos, pulmonar e
intestinal nos homens e o de mama no sexo feminino.
As Antraclinas (doxirrubicina, daunorrubicina, epirrubicina)
podem provocar dano cardíaco irreversível, classificado com tipo1,os compostos imunobiológicos
como o Trastuzimab, podem provocar dano temporal e reversível, chamado tipo 2.
O mecanismo fisiopatológico do primeiro grupo, passa pelo estresse oxidativo, peroxidação
lisossomica, sarcopenia cardíaca, necrose e apoptose celulares e redução de
células estaminais cardíacas, no segundo grupo, dos imunobiológicos, citotoxicidade
e diminuição da expressão do receptor HER cardíaco.
A dose cumulativa das antraciclinas é o principal
fator preditor da cardiotoxicidade e seu diagnóstico se faz pela detecção de
disfunção ventricular esquerda verificada como diminuição da fração de ejeção
do VE e sintomas e sinais clínicos associados com galope ventricular esquerdo e
o cotejo sintomático da síndrome. Podem também sobrevir hipertensão arterial
sistêmica, coronariopatia, arritmias cardíacas, doenças do pericárdio e
fenômenos tromboembólicos, com as mais variadas classes de quimioterápicos e
sua diversidade de aplicações sejam em neoplasias sólidas e hematológicas.
Os principais
fatores de risco para a cardiotoxicidade são: Idade (pacientes jovens) sexo
feminino, infusão parenteral, dose cumulativa, irradiação mediastinica, doenças
prévias como hipertensão e coronariopatia, e distúrbios eletrolíticos do cálcio
e magnésio. A avaliação propedêutica é realizada através de ECG, ecodopllercardiograma,
ressonância magnética cardíaca e angioressonancia, tomografia e biópsia
endomiocárdica.
Hoje dispõe- se de estratégias tanto oncológicas como
cardiológicas para minimizar o dano cardíaco. Da parte oncológica o uso dos
análogos das drogas naturais das antraciclinas como a EPIrrubicina ou a
IDArrubicina que podem ser usadas em titulações mais altas e por maior período
sem os colaterais temidos das originais, A " embalagem" lisossomica
das antraciclinas que diminuem sua toxicidade, permitem maior permanência no
organismo e sua ação direta nos vasos de nutrição neoplásica, assim como as
pró-drogas das antraciclinas associadas às mais variadas substancias como
peptideos, polímeros ou anticorpos dirigidos ao alvo neoplásico.
O uso dos imunobiológicos por seu potencial de dano
menor e transitório, o os imunobiológicos associados à toxinas fúngicas,
regimes mais curtos e exclusivos e tantos outros.Os ensaios in vitro com
modelos de tratamento também são preciosos e fazem os tratamentos mais seguros
e efetivos.
Da parte cardiológica a identificação do paciente
susceptível à cardiotoxicidade deve ser cuidadosa e minuciosa, a prevenção,
diagnóstico e tratamento de qualquer afecção que possa aumentar o risco de
nossos pacientes deve ser implementada, como meta pressórica alvo, tratamento e
controle das arritmias cardíacas, tratamento da insuficiência coronariana,
correção de distúrbios eletrolíticos, resgate da função ventricular esquerda e
acompanhamento tanto de manifestações agudas quanto tardias do tratamento quimioterápico,
uma vez que podem se dar em fases remotas pós tratamento.
Existem estratégias antioxidantes preventivas como os
hipolipemiantes,os compostos quelantes do ferro,antoxidantes,mas só uma droga
oficialmente aprovada com essa finalidade que é o daxrarozane,que tem uso
controverso pela provável interferência na eficiência das antraciclinas. Assim
como as doenças cardiovasculares, as oncológicas também têm bastante relação
com nossos hábitos e estilo de vida e alimentação. O sedentarismo é responsável
por muitas patologias, dentre elas a obesidade que é a mãe da inflamação e seus
desdobramentos, dentre eles os mais variados cânceres.
O tabagismo responde por 95% dos cânceres de pulmão, o
álcool responde por canceres em todo o aparelho digestivo, a dieta desequilibrada
rica em carne ,vermelha, defumados, embutidos, sem fibras facilitam os cânceres
de cólon, a exposição ao sol inapropriada leva ao câncer de pele, o consumo de
alimentos repletos de pesticidas e defensivos agrícolas ( contra esses é
difícil lutarmos) pode nos levar à cânceres hematológicos, a fumaça e Co2 dos
grandes centros ao câncer de pulmão, Dietas inadequadas perpetuam a bactéria
Helicobacter Pylori em nossos estômagos que nos levará ao câncer, se não
tratada efetivamente, o uso indiscriminado dos antibióticos vai desorganizar
nossa microflora intestinal e pode ocasionar câncer de intestino.
Infelizmente a lista é imensa assim como seu dano
temporário ou permanente que levará o indivíduo a um sofrimento curto ou lento
e demorado, com tratamento efetivo pela moderna onco-hematologia e sua vida
restabelecida ou infelizmente um mau desfecho e seu decesso irreversível.
Repensemos nossas vidas, reorganizemo-la no sentido dos bons hábitos, da dieta saudável,
do exercício e entreguemo-la a Deus todos os dias.