Eram já oito horas da
noite daquele outono de 1962 e minha esposa lavava as coisas do jantar na
cozinha. Resolvi telefonar para o Tavares e convidá-lo para bater uma prosa em
casa. Já tinha também jantado.
Assim que chegou,
falei:
¾ Tavares, hoje é o dia
nacional da Irlanda e meus irmãos e eu, como bons descendentes daquele estóico
e bravo povo, costumamos festejar tomando um golinho - e apenas um golinho,
(entendeu?) - de um licor que de lá veio especialmente para a gente. Tanto é
assim, que dividimos a garrafa em quatro e cada um ficou com um pouco. Nem
rótulo minha garrafa tem.
Fui buscar nossa
garrafa na despensa e me desculpei enquanto tirava o pó e teias de aranhas,
porque só a pegávamos, conforme fui adiantando, naquela data, uma vez por ano.
Tavares me
acompanhava com o olhar. Era de falar pouco.
Derramei um pouquinho
em dois pequenos cálices para licor, tomando o cuidado de não passar da metade
e informei:
¾ Só tem uma coisa,
Tavares: tome bem devagarzinho porque é forte; na verdade, é muito forte. Sabe
como é o clima lá naquelas partes, Irlanda, Escócia, Noruega, etc. O povo de lá
está acostumado com coisas mais fortes do que a gente aqui nos trópicos, mesmo
em fins de outono, como agora.
E, bem lentamente,
dava o exemplo. Não tínhamos nenhuma bolacha típica irlandesa para oferecer,
mas a Maria Lúcia tinha torrado um pouco de amendoim. Continuamos a conversar
trivialmente e eu observava meu amigo de perto, porque sabia o quanto ele era
influenciável por uma boa conversa.
Não deu outra.
¾ Mas que bebida gostosa,
William. Realmente é muito, muito forte. Acho que nunca tomei algo tão
alcoólico em minha vida. E que sabor! Dá até impressão de ser de alguma dessas
frutas exóticas dos Alpes que a gente nem conhece.
¾ Dos Alpes, não diria,
Tavares, mas provavelmente dos morros perto de Cork, na Irlanda, onde viveram
alguns de meus antepassados.
Já tínhamos quase
esvaziado nossos cálices, tomando o famigerado licor, de golinho em golinho, de
permeio ao amendoim.
¾ Mas que coisa forte,
William. Sabe que estou até me sentindo meio tonto? Nem vou tomar este restinho
aí.
¾ O que é isto, Tavares,
imagine só se meio cálice deste vai lhe afetar. Eu servi só um pouquinho,
principalmente porque o licor da garrafa precisa durar pelo menos mais dez
anos.
¾ Não, fora de
brincadeira, William, meu caro colega, já nem estou enxergando direito. Acho
que você vai ter de me levar para casa, depois desta. Amanhã cedo venho buscar
o jipe.
Fiquei, realmente,
preocupado. E se o Tavares despencasse e tivesse um coma hipoglicêmico
psico-induzido?
¾ Eta, doutor Tavares,
sabe o que o nobre colega acabou de tomar?
¾ Ué, você não me disse
que era licor irlandês?
¾ É, mas foi somente uma
brincadeira. Acabamos de tomar Vinho Reconstituinte Silva Araújo Roussel do
SARSA! Poderíamos tomar o vidro todo e certamente, acostumados que somos a uma
boa caipirinha que você me ensinou a fazer, nada sentiríamos.
Recuperou-se na hora
e sorriu. Ascendeu seu cigarro de palha e, entre tossidas, pigarreadas e baforadas,
desandou a rir sem parar.
Continuamos grandes
amigos até seu falecimento, lá em Oswaldo Cruz mesmo, em novembro de 2007. Seu
nome foi perpetuado como meu patrono da cadeira 94 da Academia Maceioense de
Letras.
1 – Primeira
versão publicada inicialmente no livro do autor Era Uma Vez Um Menino
Travesso. São Paulo: Legnar Editora, 2004. p. 65 (esgotado). Apresentado,
ligeiramente modificado, na 110ª tertúlia literária do Movimento Médico
Paulista do Cafezinho Literário – MMCL (Núcleo de Sto André - SP, em 12/09/09),
na reunião “Academia em Poesia” da Academia
Vicentina de Letras, Artes e Ofícios “Frei Gaspar da Madre de Deus” de S.
Vicente - SP em 14/09/09 no Clube Elos, na tertúlia literária do Movimento
Literário Saberes e Sabores - MLSS de S. Gonçalo do Sapucaí – MG em
22/02/10 e numa das reuniões periódicas de 2011 do MMCL em Sorocaba-SP. Publicado
em Roda Mundo 2009 – Antologia Internacional. Itu – SP: Ottoni Editora,
2009. p.168 e em Memórias Sapucaienses. Itu – SP: Ottoni Editora, 2011.
p.274 (coletânea não periódica do Movimento Literário Saberes e Sabores -
MLSS de S. Gonçalo do Sapucaí – MG)
2 - Pediatra
Sanitarista. Prof. Dr. (aposentado) da Faculdade de Saúde Pública – USP.
Fundador (05/05/05) e Coordenador Estadual do Movimento Médico Paulista do
Cafezinho Literário – MMCL. Membro Titular ativo da Associação
Brasileira de Médicos Escritores – SOBRAMES desde 2003, nível central SOBRAMES-BR,
níveis regionais SOBRAMES-PE, SOBRAMES-RS. Membro Honorário e Titular da SOBRAMES-CE.
Dissidente e separatista da SOBRAMES-SP. Membro Correspondente da Academia
Maceioense de Letras. Sócio Titular da Associação Paulista de Medicina
e Associado da Associação dos Médicos de Santos. Membro Associado da Academia Vicentina de Letras, Artes e
Ofícios “Frei Gaspar da Madre de Deus” de S. Vicente – SP.
COMENTÁRIO DO FACE: Fátima Marrocos Fontenelle disse:
ResponderExcluirViajo na leitura do blog...Muito bom.