Dr. William Moffitt Harris |
OS DOIS SELINHOS 1
William Moffitt
Harris 2
Não me recordo do tamanho, do
formato, da cor ou do valor dos dois selinhos, mas pela sua importância dentro
do contexto histórico de minha família, vale à pena contar o que aconteceu.
Morávamos em São Paulo, na
Travessa Bury. Ficava entre a Rua Minas Gerais e a Rua Sorocaba, no fim da
Avenida Paulista, onde se desce para o Pacaembu. A casa era alugada e lá a
família permaneceu desde o casamento dos meus pais em 1934 até 1957. Havia doze
casas na nossa rua e mais uma dúzia na rua de baixo, que foram construídas na
mesma época e pertenciam a dois irmãos: Guilherme e Bento Rehder. Fui, quando
criança, inúmeras vezes ao escritório destes dois senhorios, na Rua São Bento,
no centro, acompanhando minha mãe para pagar o aluguel.3
Além da formalidade comercial, o Sr.
Guilherme esteve algumas vezes em casa ajudando meu pai a catalogar sua
coleção. Faziam trocas de pequeno porte, geralmente selos ingleses por selos
alemães, devido à correspondência que ambos mantinham com familiares na Europa.
Não faltava o chá e torradas ou o delicioso pão-de-ló que Mamãe fazia e que meu
pai teimava em chamar de sponge cake
(bolo-esponja). Deste interesse por selos, nasceu uma amizade duradoura que
perdurou até o falecimento dos irmãos Rehder, seguramente trinta anos mais velhos
que meu pai. Eu me debruçava sobre a mesa da sala de jantar tentando acompanhar
a conversa dos dois. Discutiam a valer sobre a época e localização de
determinados países ou pedaços de países que haviam mudado de “proprietários”.
A cada mudança, nova emissão. Eu não entendia nada, pois era bem pequeno, mas
Papai fazia questão de apontar no atlas, muitas vezes com suas fronteiras
rabiscadas com seus redesenhos, onde ficavam aqueles países.
O Sr. Guilherme e seu irmão eram
brasileiros e falavam mal o alemão; meu pai, menos ainda, além de misturar com um
pouco de iídiche. Não o praticara havia mais de vinte anos e a maioria de seus
poucos amigos judeus, em São Paulo, preferia falar o inglês e o português,
possivelmente devido ao terror nazista na época getuliana. Lembro-me deles
discutirem sobre a pronúncia correta de Schleswig-Holstein,
Liechtenstein, Luxembourg, Alsace-Lorraine
e outros. Estes detalhes ficaram na minha memória, porque o velho vivia
repetindo estes nomes.
Havia a questão dos dois
selinhos. O Sr. Guilherme pediu, implorou diversas vezes para que me pai os
vendesse para ele. Eram selos relativamente antigos e que faltavam numa
determinada série brasileira de sua coleção. Não se achavam mais em
filatelistas comerciais. Meu pai, desconfiado como sempre, pensava que deviam
valer muito mais do que seu amigo estava oferecendo, o que não era pouco.
Recusava-se a se desfazer dos selos. Falava ainda que, um belo dia, iriam valer
uma fortuna, o que ajudaria a família a adquirir seu próprio imóvel.
Com o afundamento de oito navios
brasileiros nas costas da Bahia, em 1942 (ainda não se tem absoluta certeza por
quem), entramos na guerra contra o Eixo por pressão dos Estados Unidos e, para
selar a definitiva e clara aliança, esteve nos visitando, naquela época, o
Presidente Franklin Delano Roosevelt. Os americanos pretendiam, assim, de forma
diplomática, assegurar seu posicionamento em Fernando de Noronha para fins de
abastecimento de seus aviões. Getúlio Vargas, sabendo que o Presidente
americano era aficionado por filatelia e para agradar o visitante, resolveu
presenteá-lo com uma coleção completa de selos brasileiros, incluindo o olho-de-boi. Recorreu ao conhecido
colecionador Guilherme Rehder, oferecendo pagar-lhe uma boa quantia oriunda dos
cofres públicos. O velho Guilherme ficou profundamente envaidecido e, sentindo-se
muito honrado por ter sido escolhido, recusou o pagamento.4
Procurou antes meu pai, oferecendo desta vez
uma quantia bem maior para que meu velho abrisse mão dos dois selinhos. Colocou
a situação tocante ao Presidente Roosevelt e que, realmente, não gostaria que a
coleção fosse passada adiante de forma incompleta. Meu pai, estarrecido com o fato de o Sr. Guilherme
haver se recusado a receber o dinheiro de Vargas pela coleção, não teve
qualquer dúvida. Doou, imediatamente, os dois selinhos para o conjunto.
1 - Publicado em
12/01/06 no Nº 269 do Jornal Virtual da SOBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores)
e apresentado nas seguintes reuniões do Movimento
Médico Paulista do Cafezinho Literário –
MMCL: 4a em 11/02/06 (1a reunião do Núcleo de S.
Caetano do Sul-SP); 28a em 16/12/2006 (4a reunião do
Núcleo de Sorocaba-SP); na 49ª em 25/08/2007 (2ª do Núcleo de S. Bernardo do
Campo-SP); na 50ª em 01/09/2007 (4ª do Núcleo de Taubaté-SP) e na 64ª em
06/12/2007 (4ª do Núcleo de Ribeirão Preto-SP). Publicado em A Presença
Literária do MMCL (2005 a 2008). Organizadores: William Moffitt Harris e
Alitta Guimarães Costa Reis. Itu-SP: Ottoni Editora, 2008. p.109
2 - Pediatra
Sanitarista. Prof. Dr. (aposentado) da Faculdade de Saúde Pública – USP.
Fundador (05/05/05) e Coordenador Estadual do Movimento Médico Paulista do
Cafezinho Literário – MMCL. Membro Titular ativo da Associação
Brasileira de Médicos Escritores – SOBRAMES desde 2003, nível central SOBRAMES-BR,
níveis regionais SOBRAMES-PE, SOBRAMES-RS. Membro Honorário e
Titular da SOBRAMES-CE. Dissidente e separatista da SOBRAMES-SP.
Membro Correspondente da Academia Maceioense de Letras. Sócio Titular da
Associação Paulista de Medicina e Associado da Associação dos Médicos
de Santos. Membro Associado da Academia
Vicentina de Letras, Artes e Ofícios “Frei Gaspar da Madre de Deus” de S.
Vicente – SP. “Padrinho” do MLSS - Movimento Literário Saberes e Sabores
de S. Gonçalo do Sapucaí – MG.
3 - A partir de
1970 foram mudados, respectivamente, os nomes da Travessa Bury para Rua
Marcelino Ritter e da Rua Sorocaba para Rua Prof. Ernst Marcus.
4 – Foi nesta
ocasião que o Presidente Roosevelt doou uma de suas bengalas ao Professor Godoy
Moreira, Diretor da Clínica Ortopédica e Traumatológica – COT do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Esta bengala
continua até hoje dependurada, num cofre de vidro, no saguão de entrada do Instituto
de Ortopedia e Traumatologia de São Paulo (o mesmo prédio de 1942). Presidente
Roosevelt tinha sequela de Poliomielite que adquiriu na juventude. Quando ainda
moço foi operado nos Estados Unidos pelo Prof. Godoy Moreira que na época fazia
lá um curso de especialização. Já era afamado nos meios ortopédicos no mundo
inteiro. A bengala foi destroçada por vândalos (as más línguas incriminam
formandos bêbedos da Faculdade) já há alguns anos, mas a pedido do Centro
Acadêmico Oswaldo Cruz da FMUSP a embaixada providenciou em São Paulo uma
réplica para ficar no seu lugar. A placa de agradecimento, assinada pelo
Presidente Roosevelt, continua lá.
PARABÉNS! Viajei no seu texto... Morei com o Rosemberg em Higienópolis muito próximo ao endereço de seu pai. O Rosemberg nasceu em 1909 e gostava de colecionar selos. No seu caso, eram selos de tuberculose de inúmeros países que eram editados para angariar fundos. Ele deixou uma coleção maravilhosa que guardo com muito carinho.
ResponderExcluiranamargarida
Caro Dr. William,
ResponderExcluirveja no meu BLOG a postagem de alguns selos antituberculose.
http://anamargarida-memorias.blogspot.com.br/2012/02/o-selo-na-luta-contra-tuberculose-no.html
anamargarida
A doação dos selos pelo pai do autor me fez recordar a doação de ouro para o bem do Brasil. Acompanhei meu pai à Sociedade Dante Alighieri para doar sua aliança de ouro, único bem que ele tinha, feito com esse metal. Recebeu em troca um aliança de metal vagabundo, onde se lia: Doei ouro para o bem do Brasil.
ResponderExcluirNaquele ano, os cofres dos bancos suíços devem ter ficado abarrotados com ouro brasileiro.
Caro Dr William, que grande contador de histórias é o senhor. Meu pai é da sua geração e assim como o senhor se debruçava na mesa para ouvir as conversas de seu pai, eu ainda hoje me encanto com as histórias contadas pelo meu, que é um encantador de histórias assim como o senhor. Que beleza de selinhos! Grande abraço,Fátima Azevêdo
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