Dr. Flávio Leitão - Médico e Ex-Presidente da SOBRAMES-CE |
A
PRECORDIALGIA DO DR.
SOFONIAS
“Ainda que a traição
agrade, ao traidor tem- se aversão” Cervantes
Não
havia quem não conhecesse o Dr. Sofonias naquele velho hospital de tantas
homéricas lutas contra o sofrimento dos menos validos.
À esquisitice do nome,
idéia de seu pai, um velho protestante ortodoxo que aproveitara o nascimento do
filho para reverenciar o profeta menor, aliava uma esfuziante alegria,
patenteada por baloiçante sorriso franco, sempre aflorando no canto esquerdo do
lábio, infenso que era ao sofrimento que o rodeava.
Apesar do porte
agigantado, da acentuada distância que se interpunha entre suas duas omoplatas,
tinha o hercúleo torso curvado pelo meio século que já vivera, na azáfama do
dia-a-dia e na paciente ausculta das queixas de seus sofridos pacientes. Esta
postura deixava-o como se pretendesse fazer respeitosa vênia, ou como se
quisesse esconder-se, como um comum, no
meio da multidão de resignados pacientes. Tinha assim aspecto de homem bom,
indene às agruras naturais desta passageira vida.
Se os simples mortais
adoravam o Dr. Sofonias quanto mais Margarida,
rechonchuda quarentona que há muito assediava o bom doutor, que por
sobre não descobrir naquelas formas arredondadas motivo maior para despertar sua
concupiscência, pesava-lhe nos ombros um temer exagerado à mulher, a quem
parecia amar muito e sabia-se ser bastante ciosa quando se tratava de defender
tão rico patrimônio. Más nem os santos resistiram ao espicaçar da luxúria, ao
tridente dos ardilosos meneios de corpo de uma mulher, num momento maior de
seus lascivos desejos.
E num fim de tarde ensolarada,
quando somente o cimo das dunas ainda recebia alguns flavos e tímidos raios
solares, terminada a árdua labuta de um agitado plantão, accedeu o Dr. Sofonias
ao insistente convite da lúbrica Margarida. Ligou o motor do seu acanhado
fusquinha e, sem dizer palavra, deu uma palmada carinhosa no roliço joelho de
Margarida, partindo para a aventura primeira e mal planejada.
À medida que se
aproximavam do motel, conhecido na irreverência dos colegas como “out line
hospital” (hospital de apoio), quando mornos ventos soprados do Atlântico
adentravam-lhe as narinas, criando um agradável torpor, o pensamento voava
célere, antevendo momentos de agradável concupiscente danação carnal. E o fardo inconveniente de
seus rígidos códigos de moral, adquiridos, quando ainda menino, junto a
piedosos jesuítas, tornou-se distante e nebuloso. Concomitantemente, um
insidioso temor opunha-se à almejada felicidade. Lembrou-se de velho amigo,
somente dois anos mais velho, que encontrara, no pecaminoso leito da amante,
morte instantânea, dizia-se que por ruptura de vaso mal formado, no cérebro.
A companheira do Dr.
Sofonias percebeu a angústia do inexperiente médico na arte dos folguedos
extraconjugais. Tentou acalmar-lhe, habilidosa e experiente, acariciando-o
ardilosamente, na tentativa de fustigar-lhe a chama carnal, enquanto Sofonias
dirigia seu velho carro. Ele, contudo, persistia em situação incômoda e chegou
a, profanamente, comparar seu caminho ao de Cristo, na Gólgota. E se autopunia
pela comparação. Meu Deus, porque
lembrar-se àquela hora do sofrimento do Cristo? O Gólgota do Cristo foi para
redimir a humanidade, altruísmo por excelência, enquanto que o seu, se é que se
pode chamar de Gólgota, era apenas para coroar o forte instinto da sua
masculina sexualidade, pura lasciva. Se não chegava a ser um blasfemo, era pelo
menos um bizantino, em inoportuno instante estar, a suscitar discussões
filosóficas que seguramente não iriam contribuir para seu momento de maior.
Felizmente as
distâncias na cidade não eram grandes e logo se viu Sofonias adentrando,
tímido, o Hall do acanhado hotel. Envergonhado, mas querendo simular
inexistente autoconfiança de experimentado galã, pediu ao porteiro o melhor
quarto.
Mesmo após iniciado o
jogo frenético das carícia mútuas, dezenas de constrangedores pensamentos
roubavam-lhe a tranqüilidade necessária para desempenhar-se à altura do que lhe
solicitava a trêfega companheira. Soubera em conversa de corredores, (entre a
solução de um difícil diagnóstico e o descanso do cafezinho), que a polícia
costumava freqüentar hotéis daquele tipo, à procura de drogas e prostituição
infantil. Meu Deus, não se enquadrava em nenhum dos ilícitos penais.
Tranqüilizava-se passando aliviado a fronha do travesseiro no suarento rosto,
como se tentasse apagar do espírito tão desconfortantes pensamentos. Assaltavam-lhe
outros maus presságios. Outras espadas de Dômacles logo pendiam do teto mal
iluminado do quarto úmido, prestes a despencarem todas por sobre seu desnudo e
cabeludo corpo, rasgando-lhe as
vísceras, exposto ao escárnio dos amigos. Via-se no banco dos réus da
aristocrática família, todos de dedo em riste, a acusá-lo, a escandalizarem-se
pelo ignominioso deslize, a recriminá-lo:
-Então
Sofonias, nos enganamos por todos esses anos?-Ora, Sofonias, logo se via que aquela santidade toda não caberia dentro de você!
Magoou-se,
em pensamento, profundamente, com o comentário seco e sibilino da sogra – Este
cabra nunca me enganou!
E os filhos! Meu Deus,
os filhos eram sua maior paixão. Nada no mundo deixaria ele acontecer que
viesse magoar a qualquer da numerosa prole. Eram seus tesouros, sua vida, seu
tudo, juntamente com a meiga e casta esposa.
E, lembrando-se do
amigo que falecera em renhida refrega amorosa, tentava tranqüilizar-se, sabendo
que era hígido. Jamais perdera seu precioso tempo em consultório de colegas,
com queixas hipocondríacas. Restringia-se, quando muito, a fazer alguns exames
que a repartição obrigava-o a submeter-se, por mera rotina. Também nunca tivera
a curiosidade de conhecer o resultado dos tais exames. Tinha assim, uma saúde
perfeita. Mas que diabos! Aquele último movimento que fizera para aconchegar
melhor a companheira, despertou-lhe uma dor forte no peito. Instintivamente, Sofonias
passou a fazer compressão, como se quisesse esmagar a dor, arrancá-la e
atira-la com toda a força de seus braços no meio dos oceanos. Vã esperança.
Tudo debalde. A dor se agigantava e adquiria agora, fórum de coisa grave. Um
mal estar gástrico esfriava-lhe as vísceras, esvanecia seu prazer. Um suor frio
porejava por toda a extensão do seu corpo. Desaparecera toda a manifestação de
sua agigantada virilidade, minguara seu desejo. Convenceu-se do curso de
infarto iminente e já se dispunha a pedir socorro quando Margarida, acostumada
a lidar com pacientes, tranqüilizou-o:
-Mas Sofonias, você está sentindo dor no peito direito! E o coração não é à
esquerda?
Um sorriso de alívio
desabrochou na face simpática do Dr. Sofonias. Só agora percebia ele que seus fantasmas
tinham-lhe pregado uma peça estúpida. Sofrera tanto que esgotara suas energias.
E apenas ficou com a
satisfação que estava bem. Noutro dia, quem sabe, talvez pudesse desempenhar-se
melhor...
Flávio Leitão
Flávio Leitão
Sociedade Brasileira de Médicos Escritores
Amostra Grátis – Fortaleza:SOBRAMES Regional
do Ceará
Expressão Gráfica e Editora, 1994
Parabéns pelo conto!
ResponderExcluirDO FACE BOOK
ResponderExcluirAirton Ferro Marinho:
Muito bom o conto e espirituoso o autor! Parabéns!