Dr. Flávio Leitão - Médico e Ex-Presidente da SOBRAMES-CE |
A BURETA
Publicado em Recidivas – Coletânea da Sociedade Brasileira
de Médicos Escritores. Sobrames–CE
1998
No início da década de 60 respirava-se clima de
liberdade e nem mesmo os analistas políticos (exceção feita aos mais íntimos da
“CIA”) poderiam prever que dali a quatro anos instalar-se-ia férrea e duradoura
“manu militari”.
Em virtude do relativamente exíguo número de médicos existentes no
País, os diletos discípulos de Hipócrates gozavam de elevado apreço.
Estavam longe de serem comparados ao sal – “branco, barato e
encontradiço com a maior facilidade”, no debochante dizer de autoridade máxima
do Estado, há não muito tempo.
Como aspirantes à vida hipocrática julgavam-se, senão tão importante se
julga um cadete de Agulhas Negras, pelo menos como um cabo de destacamento de
erma cidade do interior, orgulhoso de sua função de defender a ordem e a
moralidade cristãs.
Estudantes de medicina eram, por conviverem quase
diuturnamente, muito irmãos, de modo que embora fossem as colegas de turma
graciosas pela condição natural de serem jovens umas e realmente belas outras,
não incursionavam, senão esporadicamente, no coração das mesmas, movidos tão
somente, pelo instinto natural, pois que os hormônios naquela idade costumam
agir assim.
Estudavam por vocação e porque a obtenção de algum conhecimento médico
abrigava-os todos a passarem noites indormidas, longas madrugadas insones,
debruçados sobre volumosos livros de incomensurável doutrinação médica.
Não levavam muito em consideração a inteligente e mordaz observação do
piedoso carmelita descalço Frei Josepe Índio que comiserando-se com o triste
final do genial criador dos Lusíadas relatou, após visita ao leito do miserável
moribundo: “Que aviso tan grande para los que de noche y dia se cançan,
estudiando sin provecho, como la araña em urdir telas para cazar moscas!”.
Os professores eram fidalgamente respeitados, mesmo os que não tinham
uma cultura extensa e que, por pura maldade, já tivessem sido colocados em
algum aperto, com elaborada pergunta de resposta previamente conhecida.
Dentre os mestres havia um, professor Zabulon, com traços nítidos de
cientista. Homem tranqüilo, bom, jamais fôra visto esbravejando. Falava baixo,
pouco se importando que os irrequietos alunos estivessem ou não atentos às suas
palavras.
Proferia sua aula, andando lenta e ritmadamente, de uma extremidade à
outra do tablado do anfiteatro.
Entre os dedos encardidos pela nicotina, mantinha, constantemente, um
cigarro de longa cinza fumacenta, raras vezes levado aos lábios.
Aí então, uma baforada maior incandescia o aparente apagado cigarro,
que deixava cair no solo a tortuosa cinza, que se espatifava em fina poeira
preta, confundida com a maltratada cor do piso da sala de aula.
Aferia o conhecimento da turma por mera formalidade acadêmica
obrigando-os, um a um, a fazerem reações químicas que haviam sido apresentadas
em aulas práticas.
Não se importava muito com o resultado final de tais reações, mas tinha
cioso zelo absoluto pelo material de laboratório, que ele adquiria às suas
próprias custas ou através de raras e benfazejas doações de amigos seus do
mundo industrial.
Descobrira, de modo simples e pouco dispendioso, fazer
chover numa região secularmente acostumada a sofrer longos e tediosos períodos
de seca.
Destruía o cepticismo dos mais incrédulos avisando,
com antecedência que faria chover a uma determinada hora e que, para mostrar
que não era coincidência, faria chuva de cor azul.
E, na hora aprazada, para estupefação dos incrédulos,
banhava a Praça do Ferreira tropical tempestade-relâmpago, de cor estranhamente
azul, logo transformada em caudalosos e lodacentos córregos que desapareciam
céleres nas sequiosas goelas do lobo.
Abrigava aquela turma de futuros médicos uma aluna de avantajado porte,
sorriso fácil, de rica e alva arcada dentária que contrastava com a tez de
reluzente ébano.
O pai batizara-a com bíblico
nome de homem, mas que a ignorância religiosa da turma não chegou a perceber –
Neftali. Por preguiça ou carinho, chamavam-na mais por “Néfi”. Caminhava
balançando os largos quadris, movimentando grossos braços, como se dançasse
sensual rumba latina, herança de seus antepassados, que na virgem África,
dispondo de pouco vocabulário, comunicavam suas alegrias e tristezas com
inigualável ritmicidade, através do surdo som dos atabaques e tambores.
Os companheiros não a tinham na conta das mais inteligentes, talvez por
mera maldade, ranço atávico de indesejável preconceito de cor, coisa de jovens,
esquecidos de suas verdadeiras etnias.
Eis que chega-se ao fim do ano letivo pois que a vida corre célere,
esvai-se num átimo, e há que se cumprirem certas formalidades.
O Prof. Zabulon, geralmente indiferente às exigências da burocracia
universitária, curva-se à necessidade de uma avaliação formal de seus alunos.
Assim, pitando seu indefectível cigarro, faz os estudantes, um a um, realizarem
testes com as mais variadas substâncias.
Como já lhes disse antes, pouco se importava com o resultado de tão
complicadas combinações químicas, queria, isto sim, proteger seu tesouro
científico, a parafernália que lhe havia permitido fazer chover mesmo que a
Natureza teimasse em deixar sequioso d’água o ensolarado sertão cearense.
Disto era sabedora também Neftali, pois para estas artimanhas ela era
bem expedita. Assim, simulou fagueira a mistura de algumas reações e
rapidamente, para se ver livre de tão estressante prova, comunicou com soberania:
- Pronto, professor. Deu vermelho. Ao que o velho Zabulon indiferente, com
péssima dicção que possuía, perguntou em contrapartida: Neftali, lavou a
burêta?
Neftali respondeu, entre ofendida e condescente – Professor, eu sou uma
moça limpa. Quando saio de casa tomo banho!
Flávio Leitão
Parabéns, Dr. Flávio! Seu texto me fez viajar no tempo. No tempo dos anos que estudei medicina na UFC, de 1969 a 1974. O Marcelo, certamente, vai gostar muito dele. abraço
ResponderExcluiranamargarida
Maravilha. Quantas burêtas devem ter ficado sujas nesses tempos de aula. Parabéns.
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