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terça-feira, 31 de março de 2020

POR SEBASTIÃO DIÓGENES: Minha primeira quarentena

Dr. Sebastião Diógenes

                                                Minha primeira quarentena


         A quarentena tem sido fértil em lembranças do passado.” (Arruda Bastos in Diário de uma quarentena; 11º. dia)
            Sempre tive sobrosso com quarentena. No início deste isolamento social, a primeira coisa que me veio à memória foi a lembrança dolorida da minha primeira quarentena. Foi o sarampo a causa deste sobrosso, que não me larga há 66 anos. Rogo a Deus, contudo, que não deixe o diabo do vírus chinês se meter no sobrosso do menino que fui.
O sarampo me foi um martírio. Fui levado para a casa do tio Astério, onde não havia crianças. Importante medida preventiva para não transmitir a doença para os irmãos. Esse isolamento, embora necessário, não o compreendia. Por isso me marcou profundamente na alma, porque passei dias e dias longe de casa. Dias de tristeza. Longe dos meus irmãos. Longe da Maria Pifane, que se autoproclamava minha mãe de criação. Ademais, era uma casa triste, a casa do tio, onde só habitavam adultos. Um deles, cronicamente enfermo. Ainda hoje escuto o gemido do irmão do papai, que já apresentava sintomas de uma doença neurológica, provavelmente de natureza degenerativa, que o levaria à morte muitos anos depois.
Tio Astério passava o dia deitado em uma rede, estendida na sala da frente, e não parava de gemer. Levantava-se somente para fazer as refeições à mesa e atender as necessidades corpóreas. À noite, recolhia-se ao quarto, mas continuava o mesmo tom lastimoso. O gemido tornava-se mais intenso, mais pungente, certamente, devido ao silêncio da noite.
Eu sentia muitas saudades de casa, que eram amenizadas com as visitas diárias da Maria Pifane, que chegava à noitinha. Eram momentos de felicidade, e esquecia o infortúnio do degredo. Quando adormecia, ela saia de mansinho para não me acordar, e pegava a estrada de volta, a pé. Na época, morávamos na fazenda Juiz, a meia légua dos Campos, a propriedade do tio.  Na manhã seguinte, ao despertar da noite feliz, Maria já não estava, e eu voltava a sofrer. E o tio, ainda no quarto, continuava anunciando a sua dor, que não cessava.  E eu chorava de saudade, baixinho, para não lhe atrapalhar o gemido. Pois, considerava aquele som plangente a coisa mais respeitável da casa.
Sebastião Diógenes
31-03-2020


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