Dr. Sebastião Diógenes |
Minha
primeira quarentena
“A quarentena tem sido
fértil em lembranças do passado.” (Arruda Bastos in Diário de uma
quarentena; 11º. dia)
Sempre tive
sobrosso com quarentena. No início deste isolamento social, a primeira coisa
que me veio à memória foi a lembrança dolorida da minha primeira quarentena.
Foi o sarampo a causa deste sobrosso, que não me larga há 66 anos. Rogo a Deus,
contudo, que não deixe o diabo do vírus chinês se meter no sobrosso do menino
que fui.
O
sarampo me foi um martírio. Fui levado para a casa do tio Astério, onde não
havia crianças. Importante medida preventiva para não transmitir a doença para
os irmãos. Esse isolamento, embora necessário, não o compreendia. Por isso me marcou
profundamente na alma, porque passei dias e dias longe de casa. Dias de
tristeza. Longe dos meus irmãos. Longe da Maria Pifane, que se autoproclamava
minha mãe de criação. Ademais, era uma casa triste, a casa do tio, onde só
habitavam adultos. Um deles, cronicamente enfermo. Ainda hoje escuto o gemido
do irmão do papai, que já apresentava sintomas de uma doença neurológica,
provavelmente de natureza degenerativa, que o levaria à morte muitos anos
depois.
Tio
Astério passava o dia deitado em uma rede, estendida na sala da frente, e não
parava de gemer. Levantava-se somente para fazer as refeições à mesa e atender
as necessidades corpóreas. À noite, recolhia-se ao quarto, mas continuava o
mesmo tom lastimoso. O gemido tornava-se mais intenso, mais pungente,
certamente, devido ao silêncio da noite.
Eu sentia muitas saudades de casa, que
eram amenizadas com as visitas diárias da Maria Pifane, que chegava à noitinha.
Eram momentos de felicidade, e esquecia o infortúnio do degredo. Quando
adormecia, ela saia de mansinho para não me acordar, e pegava a estrada de
volta, a pé. Na época, morávamos na fazenda Juiz, a meia légua dos Campos, a
propriedade do tio. Na manhã seguinte,
ao despertar da noite feliz, Maria já não estava, e eu voltava a sofrer. E o
tio, ainda no quarto, continuava anunciando a sua dor, que não cessava. E eu chorava de saudade, baixinho, para não
lhe atrapalhar o gemido. Pois, considerava aquele som plangente a coisa mais
respeitável da casa.
Sebastião Diógenes
31-03-2020
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