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domingo, 29 de março de 2020

POR: ANA MARGARIDA FURTADO ARRUDA ROSEMBERG - A HISTERIA CONTRA O ESCARRO NA GUERRA CONTRA A PESTE BRANCA


Ana Margarida Rosemberg e a Dama d'Auxerre - Louvre-Paris - setembro de 2019
A HISTERIA CONTRA O ESCARRO NA GUERRA CONTRA A PESTE BRANCA


A transmissibilidade da tuberculose (peste branca) foi controvérsia secular, pois a doutrina hipocrática da hereditariedade chegou a constituir um dogma até o século XIX. 
Em 1865, o francês Villemin provou que a tuberculose era transmissível inoculando material de animais doentes em outros sadios, tuberculizando-os. Porém, em 1882, coube ao alemão Robert Koch (1843-1910) o grande feito de identificar o agente causal da doença, o Mycobacterium tuberculose, que passou a ser chamado de bacilo de Koch.

Quando Koch apresentou o bacilo à comunidade científica, a tuberculose era responsável por 1/7 da mortalidade no mundo e um só tuberculoso era capaz de expelir, por dia, sete milhões de bacilos. 
O escarro, visto como o grande veículo do bacilo, passou a ser combatido com rigor. Até então, as pessoas expectoravam abundantemente atapetando o solo, as paredes, os móveis, os lenços e as roupas. Era preciso conscientizar a população a mudar esse hábito nefasto e, para isso, leis foram criadas para combater o péssimo costume de escarrar no chão e nas paredes.

Irromperam campanhas em diversos países do mundo orientando o uso das escarradeiras públicas e de bolso, contendo líquidos antissépticos. Por volta de 1890, surgiram na França as escarradeiras públicas e portáteis. As primeiras eram pesadas, de difícil manejo, com abertura de diâmetro reduzido, que dificultava o ato de escarrar sem molhar suas bordas e sem formar verdadeiras estalactites. Além disso, o ácido fênico, usado para neutralizar o bacilo, era tóxico e exalava mal cheiro, provocando náuseas e acessos de tosse nos tísicos.

Inúmeros cartazes com dizeres sobre o risco de escarrar no chão foram editados em vários países do mundo. 
No Brasil, as Ligas de Combate à Tuberculose e a Inspetoria de Profilaxia de Tuberculose (IPT) do Departamento Nacional de Saúde (DNS) do Distrito Federal encamparam esta forma de luta.  

Criou-se uma verdadeira guerra contra o escarro, chegando-se a uma histeria coletiva desencadeada pelas campanhas das instituições médicas. Em todos os países, viam-se cartazes afixados em diversos locais. Folhetos foram distribuídos às populações alertando-as sobre a transmissão da tuberculose. O comércio tirou proveito. Anunciavam-se escarradeiras próprias para hospitais, escritórios, fábricas, restaurantes, teatros, transportes coletivos etc.

Em Paris, empresas faziam propaganda de escarradeiras de bolso e porta-lenços antissépticos descartáveis. Em Berlim, inventaram um preparado aderente para colar nas solas dos sapatos que matava os bacilos. Usavam-se impermeabilizadores de assoalhos com substancias bactericidas. Uma empresa internacional vendeu colchões e travesseiros com antissépticos que matavam os bacilos. Nos Estados Unidos, foi promulgada portaria proibindo escarrar nos assoalhos, plataformas das estações e viaturas públicas. Os contraventores eram multados com 25 dólares ou 10 dias de prisão. Em Viena, a multa ia de 2 a 200 coroas com prisão de 6 horas até 20 dias. Os hotéis da Europa ofereciam apartamentos sem tapetes e sem cortinas.

No Brasil, a Liga Paulista Contra a Tuberculose solicitou o apoio da imprensa diária e a maior parte dos jornais da capital Paulistana inseriu em suas páginas, por muito tempo, essas máximas de profilaxia contra a tuberculose criando no espírito popular uma consciência sanitária. Foi votada uma lei que proibia escarrar nos teatros, igrejas, hotéis, casas de pensão, circos, frontões, prados de corridas, cafés, confeitarias, mercados etc. Esses estabelecimentos foram obrigados a instalar escarradeiras higiênicas coletivas, contendo líquido antissépticos, elevadas de um metro sobre o solo ou suspensas nas paredes.

Na guerra ao escarro foi relevante o papel que as escarradeiras desempenharam. As antigas de madeira cheias de areia e serradura foram, irremediavelmente, condenadas pela higiene. Aquelas de metal, vidro ou ferro esmaltado, apesar de mais asseadas, não foram toleradas por muito tempo por apresentarem pequeno tamanho e não permitirem a colocação de uma camada suficiente de líquido antisséptico para impedir a dessecação dos escarros. Depois, por serem instáveis, podiam tombar com facilidade, contaminando o chão com seu conteúdo e, por serem colocadas ao nível do solo, dificultavam a projeção dos escarros em seus interiores, principalmente quando suas aberturas não eram suficientemente amplas. Outro problema era a dificuldade para limpá-las e esterilizá-las por causa de suas reentrâncias. Todos esses inconvenientes das “cuspideiras” comuns justificavam sua condenação pela ciência sanitária como uma peça anti-higiênica para ser usada, principalmente, nos lugares públicos.

As escarradeiras fixas, de fácil limpeza e desinfecção, adaptadas às paredes e sempre a certa altura do assoalho, eram as mais aconselhadas. Afinal, essas escarradeiras higiênicas estavam sendo utilizadas nos países civilizados. Existiam vários tipos e modelos de escarradeiras e as mesmas tornaram-se objetos requintados que ornamentavam as residências dos ricos.  Os pobres escarravam no chão, dentro de seus dormitórios escuros e sem ventilação, espalhando bacilos e contaminando facilmente seus familiares.

É interessante observar que com o mesmo slogan, “É PROIBIDO”, o destino de dois objetos, escarradeira e cinzeiro, nas lutas contra a tuberculose e contra o tabaco, foi completamente diferente. Na primeira, as escarradeiras entraram na moda e se disseminaram por todos os lugares. Na segunda, os cinzeiros foram, paulatinamente, saindo de moda e desaparecendo, pouco a pouco, das residências e demais locais públicos.

Enquanto a profilaxia da tuberculose era feita através do combate ao escarro, o alemão Carl Georg Friedrich Wilhelm Flügge (1847-1923) mostrou, no finalzinho do século XIX, que não só a poeira seca (fruto da dessecação do escarro) era responsável pela transmissão do bacilo, mas, principalmente, a poeira líquida que o tuberculoso, a cada instante, projetava ao falar, tossir, espirrar e cantar. Essas gotículas carregadas de bacilos passaram a ser chamadas de gotículas de Flügge e tornaram-se as principais responsáveis pela propagação da tuberculose.

Porém, a ideia do perigo do escarro persistiu por muito tempo e só, paulatinamente, deu lugar a ideia de que as gotículas de Flüggle eram bem mais poderosas na transmissão da tuberculose. A partir de então, o tísico passou a ser visto como perigoso, não só pela sua expectoração, mas, principalmente, por sua presença.

 Hoje, sabe-se que a tuberculose se transmite através das gotículas de Flügge e só excepcionalmente através do escarro. Na época da guerra ao escarro, teria sido mais viável uma guerra às gotículas. Porém, elas não eram visíveis como o escarro e foi nele que Koch descobriu o bacilo.

Ana Margarida Furtado Arruda Rosemberg

Fortaleza, 29 de março e 2020

Fonte: ROSEMBERG, Ana Margarida Furtado Arruda. Guerra à Peste Branca – Clemente Ferreira e a Liga Paulista contra a Tuberculose - 1899-1947. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 2008.
 
Escarradeiras de domicílio
 
Escarradeira de metal

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