A HISTERIA CONTRA O ESCARRO NA GUERRA
CONTRA A PESTE BRANCA
A transmissibilidade
da tuberculose (peste branca) foi controvérsia secular, pois a doutrina
hipocrática da hereditariedade chegou a constituir um dogma até o século XIX.
Em 1865,
o francês Villemin provou que a tuberculose era transmissível inoculando material de animais doentes em outros sadios, tuberculizando-os. Porém, em 1882, coube ao
alemão Robert Koch (1843-1910) o grande feito de identificar o agente causal da
doença, o Mycobacterium tuberculose, que passou a ser chamado de bacilo de Koch.
Quando Koch apresentou
o bacilo à comunidade científica, a tuberculose era responsável por
1/7 da mortalidade no mundo e um só tuberculoso era capaz de expelir, por
dia, sete milhões de bacilos.
O escarro, visto como o grande veículo
do bacilo, passou a ser combatido com rigor. Até então, as pessoas
expectoravam abundantemente atapetando o solo, as paredes, os móveis, os lenços
e as roupas. Era preciso conscientizar a população a mudar esse
hábito nefasto e, para isso, leis foram criadas para combater o péssimo costume de
escarrar no chão e nas paredes.
Irromperam campanhas
em diversos países do mundo orientando o uso das escarradeiras públicas e de
bolso, contendo líquidos antissépticos. Por volta de 1890, surgiram na
França as escarradeiras públicas e portáteis. As primeiras eram pesadas,
de difícil manejo, com abertura de diâmetro reduzido, que dificultava o ato de
escarrar sem molhar suas bordas e sem formar verdadeiras
estalactites. Além disso, o ácido fênico, usado para neutralizar o bacilo,
era tóxico e exalava mal cheiro, provocando náuseas e acessos de tosse
nos tísicos.
Inúmeros cartazes com
dizeres sobre o risco de escarrar no chão foram editados em vários países
do mundo.
No Brasil, as Ligas de Combate à Tuberculose e a Inspetoria de
Profilaxia de Tuberculose (IPT) do Departamento Nacional de Saúde (DNS) do
Distrito Federal encamparam esta forma de luta.
Criou-se uma
verdadeira guerra contra o escarro, chegando-se a uma histeria coletiva
desencadeada pelas campanhas das instituições médicas. Em todos os países,
viam-se cartazes afixados em diversos locais. Folhetos foram distribuídos
às populações alertando-as sobre a transmissão da tuberculose. O comércio
tirou proveito. Anunciavam-se escarradeiras próprias para hospitais,
escritórios, fábricas, restaurantes, teatros, transportes coletivos etc.
Em Paris, empresas
faziam propaganda de escarradeiras de bolso e porta-lenços antissépticos
descartáveis. Em Berlim, inventaram um preparado aderente para colar nas solas
dos sapatos que matava os bacilos. Usavam-se impermeabilizadores de
assoalhos com substancias bactericidas. Uma empresa internacional vendeu colchões
e travesseiros com antissépticos que matavam os bacilos. Nos Estados Unidos,
foi promulgada portaria proibindo escarrar nos assoalhos, plataformas das
estações e viaturas públicas. Os contraventores eram multados com 25 dólares ou
10 dias de prisão. Em Viena, a multa ia de 2 a 200 coroas com prisão de 6
horas até 20 dias. Os hotéis da Europa ofereciam apartamentos sem tapetes e sem
cortinas.
No Brasil, a Liga
Paulista Contra a Tuberculose solicitou o apoio da imprensa diária e a maior
parte dos jornais da capital Paulistana inseriu em suas páginas, por muito
tempo, essas máximas de profilaxia contra a tuberculose criando no espírito
popular uma consciência sanitária. Foi votada uma lei que proibia escarrar nos
teatros, igrejas, hotéis, casas de pensão, circos, frontões, prados de corridas,
cafés, confeitarias, mercados etc. Esses estabelecimentos foram obrigados a instalar
escarradeiras higiênicas coletivas, contendo líquido antissépticos, elevadas de
um metro sobre o solo ou suspensas nas paredes.
Na guerra ao escarro
foi relevante o papel que as escarradeiras desempenharam. As antigas de madeira
cheias de areia e serradura foram, irremediavelmente, condenadas pela higiene.
Aquelas de metal, vidro ou ferro esmaltado, apesar de mais asseadas, não foram
toleradas por muito tempo por apresentarem pequeno tamanho e não permitirem a
colocação de uma camada suficiente de líquido antisséptico para impedir a
dessecação dos escarros. Depois, por serem instáveis, podiam tombar com
facilidade, contaminando o chão com seu conteúdo e, por serem colocadas ao nível
do solo, dificultavam a projeção dos escarros em seus interiores,
principalmente quando suas aberturas não eram suficientemente amplas. Outro
problema era a dificuldade para limpá-las e esterilizá-las por causa de suas reentrâncias.
Todos esses inconvenientes das “cuspideiras” comuns justificavam sua condenação
pela ciência sanitária como uma peça anti-higiênica para ser usada,
principalmente, nos lugares públicos.
As escarradeiras
fixas, de fácil limpeza e desinfecção, adaptadas às paredes e sempre a certa
altura do assoalho, eram as mais aconselhadas. Afinal, essas escarradeiras
higiênicas estavam sendo utilizadas nos países civilizados. Existiam vários
tipos e modelos de escarradeiras e as mesmas tornaram-se objetos requintados
que ornamentavam as residências dos ricos.
Os pobres escarravam no chão, dentro de seus dormitórios escuros e sem
ventilação, espalhando bacilos e contaminando facilmente seus familiares.
É interessante
observar que com o mesmo slogan, “É PROIBIDO”, o destino de dois objetos,
escarradeira e cinzeiro, nas lutas contra a tuberculose e contra o tabaco, foi
completamente diferente. Na primeira, as escarradeiras entraram na moda e se
disseminaram por todos os lugares. Na segunda, os cinzeiros foram, paulatinamente,
saindo de moda e desaparecendo, pouco a pouco, das residências e demais locais
públicos.
Enquanto a profilaxia da
tuberculose era feita através do combate ao escarro, o alemão Carl Georg
Friedrich Wilhelm Flügge (1847-1923) mostrou, no finalzinho do século XIX, que
não só a poeira seca (fruto da dessecação do escarro) era responsável pela
transmissão do bacilo, mas, principalmente, a poeira líquida que o tuberculoso,
a cada instante, projetava ao falar, tossir, espirrar e cantar. Essas gotículas
carregadas de bacilos passaram a ser chamadas de gotículas de Flügge e tornaram-se as principais responsáveis pela propagação da tuberculose.
Porém, a ideia do perigo do
escarro persistiu por muito tempo e só, paulatinamente, deu lugar a ideia de
que as gotículas de Flüggle eram bem mais poderosas na transmissão da tuberculose. A
partir de então, o tísico passou a ser visto como perigoso, não só pela
sua expectoração, mas, principalmente, por sua presença.
Hoje, sabe-se que a tuberculose se transmite
através das gotículas de Flügge e só excepcionalmente através do escarro. Na
época da guerra ao escarro, teria sido mais viável uma guerra às gotículas.
Porém, elas não eram visíveis como o escarro e foi nele que Koch descobriu o
bacilo.
Ana Margarida Furtado Arruda
Rosemberg
Fortaleza, 29 de março e 2020
Fonte: ROSEMBERG, Ana Margarida Furtado
Arruda. Guerra à Peste Branca – Clemente Ferreira e a Liga Paulista contra a Tuberculose
- 1899-1947. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 2008.
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