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quarta-feira, 25 de março de 2020

POR ARRUDA BASTOS: Diário de uma quarentena (5º dia)

Dr. Arruda Bastos


Por Arruda Bastos
Devia ter complicado menos, trabalhado menos, ter visto o sol se pôr


Chegamos ao quinto dia e estou começando a não saber, de forma automática, qual é o dia da semana. A televisão do meu quarto, que era tão imponente, hoje me olha de soslaio e eu não dou nem bola. Novela, BBB, alguns programas e até certos filmes que, de tanto passar, já decorei, não me apetecem mais. Jornal só mesmo o apresentado pela Maju Coutinho, o do meio dia. O Nacional, se assistir um pouco, digo que fico com antojo parecendo mulher grávida.
Minha repugnância é tamanha por televisão que até mesmo as notícias de esporte e do meu Vozão, estou dispensando. O rádio, pelo qual sou aficionado desde criança, por enquanto vou ouvindo aqui e acolá, até mesmo porque o meu programa “Saúde em Dia” continua no ar diariamente das 12h30min às 13h na Assunção AM 620. É uma boa programação para quem está em isolamento social. Não vou ao estúdio e faço tudo de casa por telefone.
Mudando de leriado, não sei se o meu leitor tem a mesma sensação, mas todos os dias dessa quarentena têm cara de domingo e, quando acordo no outro dia, parece segunda (mas só por alguns minutos). Acho que estou ficando sugestionado. Não sei bem se é síndrome de abstinência ou sei lá o quê. Sei que de álcool não é, pois nunca bebi, e fumar também não fumo. Acho que só tem uma explicação: deve ser a falta do trabalho. Tem quem diga que eu sou viciado em trabalho.
Como já tinha cumprido minhas tarefas diárias, que não custa repetir: caminhada pelo apartamento, banho de sol na varanda, realização da minha aula na internet, consertos diversos na casa e leitura, resolvi, por curiosidade, pesquisar no mestre Google quais os sinais de um viciado em trabalho. Encontrei um site que listava as dez características principais de um VT (viciado em trabalho).
A página me deixou impressionado e iniciava ensinando que Workaholic e Working Dead são duas expressões americanas usadas para caracterizar os viciados em trabalho. Depois, a página perguntava “Será que você faz parte deste exército de viciados em trabalho?”, e desafiava “Descubra a resposta até o final deste artigo”.
O ócio do isolamento levou-me a aceitar o desafio e de chofre passei a responder o questionário. “É o primeiro a chegar e o último a sair?”, “Não tem tempo ou não almoça?”, “Leva muito trabalho para casa?”, “Não consegue se desligar do trabalho, trabalha mesmo doente?”. Com todas as respostas positivas, o meu diagnóstico foi rápido.
Depois da constatação da causa dos meus sintomas, e sabendo que para tratar qualquer vício a abstinência é fundamental, o meu isolamento social, além do aspecto positivo para a saúde pública, pois contribui para a tentativa de reduzir o crescimento da Covid-19, tem como forte tendência me curar do VT. Digo que vou trabalhar menos depois que tudo voltar ao normal.
Hoje, vou concluir com a letra da música dos Titãs intitulada Epitáfio:
Devia ter amado mais

Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais e até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer
Queria ter aceitado as pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração

O acaso vai me proteger

Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...

Devia ter complicado menos, trabalhado menos

Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier

O acaso vai me proteger

Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...

Devia ter complicado menos, trabalhado menos

Ter visto o sol se pôr.

Amanhã eu volto com uma nova crônica.

Este foi o dia nº 5. #FiquemEmCasa

Arruda Bastos é médico, professor universitário e presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES-CE).




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