Diário de uma quarentena (23º dia)
O testamento de Judas e o “Cachorro Magro”
Por Arruda Bastos
Hoje, 11 de abril, é sábado de aleluia, o meu vigésimo terceiro dia de quarentena. Lamento comunicar aos meus amigos e à família que, infelizmente, não vai ser possível realizar a tradicional malhação do Judas na fazenda “Cachorro magro”. Devido ao isolamento social do coronavírus, não vou sair de Fortaleza.
Tem um ditado que diz que “recordar é viver” e, no dia de hoje, vou fazer exatamente isso. Fechando os olhos, retornei no tempo e pousei em Itapipoca, terra abençoada e berço da minha amada Marcilia. Lá, durante anos a fio, na fazenda do meu sogro, que os filhos herdaram, o boneco de Judas pendurado no poste na entrada do terreiro era uma atração aguardada por toda a região.
A festança atraía público que vinha das fazendas vizinhas: Beba Mais Leite, do Recamonde, e da Gangorra. Tinha quem viesse até de povoados mais distantes, descendo o rio Sororó. As atrações eram duas: o boneco confeccionado pelo meu concunhado Almir com a ajuda de muitos outros familiares e o testamento que era de uma inspiração ímpar.
O dito cujo era escrito a muitas mãos e sempre dirigido aos presentes, principalmente àqueles mais conhecidos na região. O testamento era cumprido e, na maioria das vezes, trazia estrofes sem um só verso de pé-quebrado. A irreverência e o atrevimento não poupava ninguém, nem mesmo eu que ocupava a função de mestre de cerimônia.
Digo que, depois da leitura pública e da queima do Judas, tudo era só alegria, o cuidado mesmo era com meus filhos, ainda pequenos, os sobrinhos menores e com uma reca de crianças que teimavam em brincar no terreiro perto do boneco em chamas.
O Judas era de primeira, tinha o meu tamanho, chapéu, sempre vestia terno, às vezes de linho, e era aplumado de tudo até na gravata. As doações para sua confecção eram arrecadadas na família, que premeditadamente levava de Fortaleza. Dava até pena de queimar.
Lembro-me de uma vez que ”a porca quase torce o rabo". Não vou dizer o nome do ilustre convidado que tinha sido prefeito, mas o certo é que depois de ouvir a leitura do testamento, que falava de dinheiro de uma prefeitura, o mesmo tomou as dores e vestiu a carapuça. Quase que o “caldo entorna”, a sorte é que um parente, que era amigo dele, acalmou a fera.
Quando o ano era de um bom inverno a coisa melhorava. A fartura era grande, tinha espiga de milho, canjica e muito mais. A dificuldade era chegar na localidade, pois a estrada de barro e com muitos buracos tinha muito atoleiro. O Fiat 147 da Marcilia e o meu Del Rey de quatro portas que o digam.
No final tudo era só festa e a programação para o ano seguinte já ficava acertada. Espero que em 2021 possamos estar todos juntos para queimarmos o Judas e para agradecer o seu testamento de hoje que diz: Pro meu amigo Arruda, cabra da melhor qualidade, autarquia e esticado, deixo minha assinatura no seu Diário da quarentena, minhas roupas de marca, muita saúde, perseverança e paz. Obrigado e que assim seja!
Amanhã eu volto com uma nova crônica.
Este foi o dia nº 23. #FiquemEmCasa
Arruda Bastos é médico, professor universitário e presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES-CE)
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