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quinta-feira, 28 de maio de 2020

POR SEBASTIÃO DIÓGENES: Saga de uma família em extinção


                                                     
                                                 Saga de uma família em extinção

Encontrava-me no gabinete de estudos lendo a “Servidão humana”, de Somerset Maugham, quando uma conversinha na prateleira da estante começou a me retirar a concentração. Corri a vista onde estavam os dicionários. Nada parecia de anormal. Voltei à leitura, e o diálogo entre duas pessoas me tornou a perturbar. Olhei novamente as prateleiras. Desta vez, flagrei o amigão Aurélio aberto, com suas páginas agitadas por algum fenômeno que não compreendia. Logo depois, constatei que se tratava de uma reunião de família, e que havia desgosto na fala de alguns de seus membros. Chamou-me atenção a elegância de uma senhora bem velhinha, vestida com o rigor que a sua época impusera. Apresentou-se a mim como “Senhora de idade secular”. Frente a frente a esta, encontrava-se um adolescente esperto, comunicativo, cheio de intimidades. Eles haviam trocado algumas palavras, aquela conversinha que me incomodara. De repente, vi lágrimas banhando o rosto da Senhora de idade secular.
-  Por que cê está chorando? – perguntou o adolescente esperto.
 Ela não respondeu, dobrou o pranto. Havia uma profunda amargura no seu semblante. Julguei desaforo o modo de o rapazinho tratar a Senhora de idade secular. Ele havia usado o pronome de tratamento “cê”, que lhe era desconhecido e, ao mesmo tempo, inadequado para gente da categoria dela.
- Qual é o seu nome, garoto? – perguntou a anciã, ainda em choro convulso.
-  Meu  nome é Cê – respondeu o garoto.
- Por que a sua mãe escolheu esse nome monossilábico? – perguntou com curiosidade, a elegante senhora.
- Minha mãe diz que é a forma de tratamento que o povo, de pouca escola, gosta de usar. Não gasta tempo para pronunciar. “A voz do povo é a voz de Deus”, é o ditado popular que minha mãe gosta de usar para se defender das zombarias que algumas pessoas intolerantes fazem por causa do meu  nome.
- Com perdão da pequena palavra, Cê é filho de quem?
- Sou filho de Ocê – respondeu Cê. – A minha mãe é da mesma forma de tratamento que a minha pequena pessoa.
- Cê, me faça o favor de trazer sua mãe aqui! Tenho muita vontade de conhecê-la – pediu a Senhora de idade secular. 
- É pra já! A senhora vai já conhecer Ocê, minha mãe. Ela tem idade de ser sua trineta – completou Cê. Ele grita a todo pulmão.  - Mãe venha aqui, tem uma senhora que quer conhecer ocê!
- Então, Ocê é a mãe de Cê? – perguntou a Senhora de idade secular.
- Sou eu mesma – respondeu Ocê.
- Tão nova, e já tem um rapazinho! – admirou-se a Senhora de idade secular. – Como é o nome da sua mãe?
- O nome da mamãe é Você – respondeu Ocê.
- Ocê, eu quero conhecer sua mãe. Faça-me o favor de trazê-la até aqui! – pediu a Senhora de idade secular.
- Cê, meu filho, vá chamar sua avó!  – ordenou Ocê, filha de Você. Cê sai correndo e logo depois retornou com a vovó Você.
- Você, que prazer conhecer você! Sua filha Ocê e seu neto Cê são pessoas dadas, tratam-me com intimidade, o que me deixam meio sem jeito – observou a Senhora de idade secular.  – E sua mãe como se chama, Você? – indagou a misteriosa senhora.
- Vosmecê, é o nome de minha mãe – respondeu Você. – A senhora deseja conhecê-la? –  indagou Você.
- Seria uma honra para esta esquecida velha conhecer Vosmecê, a sua mãe – respondeu a Senhora de idade secular.
Você mandou sua filha Ocê chamar a sua mãe, Vosmecê, que é naturalmente a avó de Ocê.
- Senhora, aqui está a minha mãe, Vosmecê – apresentou Você. Ela é avó de minha filha Ocê e bisavó de meu neto Cê, que lhe foram apresentados – completou Você.  
- Encantada! – disse sorrindo. – Vosmecê, por favor, de quem  vosmecê é filha? – indagou a Senhora de idade secular.
- Sou filha de Vossemecê. Infelizmente, convivi pouco com a minha mãe – respondeu Vosmecê. – Ah! Como gostaria de conhecer Vossemecê! – exclamou a Senhora de idade secular. – Pois, providenciarei para satisfazer o desejo de vosmecê  – tranquilizou Vosmecê.
Vosmecê mandou Você chamar a sua mãe, Vossemecê, que naturalmente é a avó de Você. Vossemecê ao ver a Senhora de idade secular teve uma forte emoção, lágrimas correram pela face, e com a voz embargada, exclamou:
- Mamãe! Mamãe! Sou eu, sua filha, Vossemecê! Vossa Mercê não se lembra de mim? – indagou a filha em prantos.
- Tenho uma vaga lembrança de Vossemecê, minha filha, mas o tempo me tem estragado a memória – falou Vossa Mercê, e continuou. - Ademais, vivo em estado de dicionário há anos e anos. Uma espécie de asilo para idosos. Tornei-me inútil. Tudo começou quando Vossemecê nasceu, e aos poucos vossemecê foi ocupando o meu lugar. O tempo é impiedoso, e a sua vez não tardou chegar. Quando a filha de vossemecê nasceu, a menina Vosmecê, foi também aos poucos nos ocupando os  lugares nas gramáticas, na literatura, na boca do povo.  E assim, a cada nascimento de um novo rebento da nossa linhagem, seus ancestrais vão perdendo a utilidade e os descendentes vão ficando mais pobres de fonemas.  Veja o caso de meu bisneto Você, filho de Vosmecê. No momento, ele está bem, goza do prestígio dos gramáticos, classificam-no como pronome de segunda pessoa, não obstante, na harmonia verbal, comporte-se como se fosse gente de terceira. Você é bastante utilizado na linguagem escrita e falada, mas, temo pela sorte dele ao longo do tempo. Basta observar a evolução histórica da família, e o que está ocorrendo com a lastimável descendência de Você: a filha é Ocê e o neto, Cê. São nomes abonados pelo Aurélio, mas não o são pelo VOLP. Portanto, nada nos garante que a nossa dinastia alcance mais um século de existência. Eu, Vossa Mercê, da qual a árvore genealógica se originou, sofro a perda dos meus ramos nas gerações sucessivas. E para este infeliz neto de Você, restou um mísero fonema: Cê. Declaro  encerrada a reunião. Com licença, vou me recolher aos aposentos. Cê, tome a bênção à sua tataravó – recomendou Vossa Mercê. 
- Tchau, Vossa Mercê!
Sebastião Diógenes
27-05-2020

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