Saga de uma família em extinção
Encontrava-me no gabinete de estudos
lendo a “Servidão humana”, de
Somerset Maugham, quando uma conversinha na prateleira da estante começou a me
retirar a concentração. Corri a vista onde estavam os dicionários. Nada parecia
de anormal. Voltei à leitura, e o diálogo entre duas pessoas me tornou a
perturbar. Olhei novamente as prateleiras. Desta vez, flagrei o amigão Aurélio aberto, com suas páginas
agitadas por algum fenômeno que não compreendia. Logo depois, constatei que se
tratava de uma reunião de família, e que havia desgosto na fala de alguns de
seus membros. Chamou-me atenção a elegância de uma senhora bem velhinha,
vestida com o rigor que a sua época impusera. Apresentou-se a mim como “Senhora
de idade secular”. Frente a frente a esta, encontrava-se um adolescente
esperto, comunicativo, cheio de intimidades. Eles haviam trocado algumas
palavras, aquela conversinha que me incomodara. De repente, vi lágrimas
banhando o rosto da Senhora de idade secular.
-
Por que cê está chorando? – perguntou o adolescente esperto.
Ela não respondeu, dobrou o pranto. Havia uma
profunda amargura no seu semblante. Julguei desaforo o modo de o rapazinho
tratar a Senhora de idade secular. Ele havia usado o pronome de tratamento
“cê”, que lhe era desconhecido e, ao mesmo tempo, inadequado para gente da
categoria dela.
- Qual é o seu nome, garoto? –
perguntou a anciã, ainda em choro convulso.
-
Meu nome é Cê – respondeu o
garoto.
- Por que a sua mãe escolheu esse
nome monossilábico? – perguntou com curiosidade, a elegante senhora.
- Minha mãe diz que é a forma de
tratamento que o povo, de pouca escola, gosta de usar. Não gasta tempo para
pronunciar. “A voz do povo é a voz de Deus”, é o ditado popular que minha mãe
gosta de usar para se defender das zombarias que algumas pessoas intolerantes
fazem por causa do meu nome.
- Com perdão da pequena palavra, Cê
é filho de quem?
- Sou filho de Ocê – respondeu Cê. –
A minha mãe é da mesma forma de tratamento que a minha pequena pessoa.
- Cê, me faça o favor de trazer sua
mãe aqui! Tenho muita vontade de conhecê-la – pediu a Senhora de idade
secular.
- É pra já! A senhora vai já
conhecer Ocê, minha mãe. Ela tem idade de ser sua trineta – completou Cê. Ele
grita a todo pulmão. - Mãe venha aqui,
tem uma senhora que quer conhecer ocê!
- Então, Ocê é a mãe de Cê? –
perguntou a Senhora de idade secular.
- Sou eu mesma – respondeu Ocê.
- Tão nova, e já tem um rapazinho! –
admirou-se a Senhora de idade secular. – Como é o nome da sua mãe?
- O nome da mamãe é Você – respondeu
Ocê.
- Ocê, eu quero conhecer sua mãe.
Faça-me o favor de trazê-la até aqui! – pediu a Senhora de idade secular.
- Cê, meu filho, vá chamar sua
avó! – ordenou Ocê, filha de Você. Cê
sai correndo e logo depois retornou com a vovó Você.
- Você, que prazer conhecer você!
Sua filha Ocê e seu neto Cê são pessoas dadas, tratam-me com intimidade, o que
me deixam meio sem jeito – observou a Senhora de idade secular. – E sua mãe como se chama, Você? – indagou a
misteriosa senhora.
- Vosmecê, é o nome de minha mãe –
respondeu Você. – A senhora deseja conhecê-la? – indagou Você.
- Seria uma honra para esta
esquecida velha conhecer Vosmecê, a sua mãe – respondeu a Senhora de idade
secular.
Você mandou sua filha Ocê chamar a
sua mãe, Vosmecê, que é naturalmente a avó de Ocê.
- Senhora, aqui está a minha mãe,
Vosmecê – apresentou Você. Ela é avó de minha filha Ocê e bisavó de meu neto
Cê, que lhe foram apresentados – completou Você.
- Encantada! – disse sorrindo. –
Vosmecê, por favor, de quem vosmecê é
filha? – indagou a Senhora de idade secular.
- Sou filha de Vossemecê. Infelizmente,
convivi pouco com a minha mãe – respondeu Vosmecê. – Ah! Como gostaria de
conhecer Vossemecê! – exclamou a Senhora de idade secular. – Pois,
providenciarei para satisfazer o desejo de vosmecê – tranquilizou Vosmecê.
Vosmecê mandou Você chamar a sua
mãe, Vossemecê, que naturalmente é a avó de Você. Vossemecê ao ver a Senhora de
idade secular teve uma forte emoção, lágrimas correram pela face, e com a voz
embargada, exclamou:
- Mamãe! Mamãe! Sou eu, sua filha,
Vossemecê! Vossa Mercê não se lembra de mim? – indagou a filha em prantos.
- Tenho
uma vaga lembrança de Vossemecê, minha filha, mas o tempo me tem estragado a
memória – falou Vossa Mercê, e continuou. - Ademais, vivo em estado de
dicionário há anos e anos. Uma espécie de asilo para idosos. Tornei-me inútil.
Tudo começou quando Vossemecê nasceu, e aos poucos vossemecê foi ocupando o meu
lugar. O tempo é impiedoso, e a sua vez não tardou chegar. Quando a filha de
vossemecê nasceu, a menina Vosmecê, foi também aos poucos nos ocupando os lugares nas gramáticas, na literatura, na
boca do povo. E assim, a cada nascimento
de um novo rebento da nossa linhagem, seus ancestrais vão perdendo a utilidade
e os descendentes vão ficando mais pobres de fonemas. Veja o caso de meu bisneto Você, filho de
Vosmecê. No momento, ele está bem, goza do prestígio dos gramáticos,
classificam-no como pronome de segunda pessoa, não obstante, na harmonia
verbal, comporte-se como se fosse gente de terceira. Você é bastante utilizado
na linguagem escrita e falada, mas, temo pela sorte dele ao longo do tempo.
Basta observar a evolução histórica da família, e o que está ocorrendo com a
lastimável descendência de Você: a filha é Ocê e o neto, Cê. São nomes abonados
pelo Aurélio, mas não o são pelo VOLP. Portanto, nada nos garante que a nossa
dinastia alcance mais um século de existência. Eu, Vossa Mercê, da qual a
árvore genealógica se originou, sofro a perda dos meus ramos nas gerações
sucessivas. E para este infeliz neto de Você, restou um mísero fonema: Cê.
Declaro encerrada a reunião. Com
licença, vou me recolher aos aposentos. Cê, tome a bênção à sua tataravó –
recomendou Vossa Mercê.
- Tchau, Vossa Mercê!
Sebastião Diógenes
27-05-2020
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