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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

POR RAYMUNDO SILVEIRA - CADÊ O MONTEIRO?


Dr. Raymundo Silveira - Médico e Membro da SOBRAMES-CE



Onde andará o Monteiro? Por favor, alguém aí em Portugal poderia me dar notícias dele? Gostaria imenso de reencontrar o Monteiro, pois não o vejo desde Agosto de 1980, portanto há exatos vinte e nove anos. Este início de conversa fiada está a se assemelhar com uma história real sucedida com um ricaço da minha aldeia, quando veio morar aqui na cidade grande. Ele se punha nas paragens dos autocarros e acenava para cada um que passava. Quando o veículo parava, ele subia, pedia ao condutor para aguardar um instante e indagava claro e em bom tom a todos os passageiros: “Alguém sabe dizer se o João Arruda vai aí?” Mas, quem sabe, até as pedras se encontram, diz um velho chavão. Pode ser que algum internauta lusitano conheça e dê notícias do Monteiro.

 Naquele tempo ele devia ter entre quarenta e quarenta e cinco anos, estatura mediana, cabeleira basta começando a grisalhar e a tez típica do homem mediterrâneo. Infelizmente, são apenas estes os detalhes que lembro a fim de descrever a sua aparência física, embora ainda tenha aqui comigo uma fotografia onde ele aparece. Só que do peito pra cima. O Monteiro foi o meu cicerone durante a minha primeira viagem a Portugal. Para ser mais preciso, foi o taxista que me levou a conhecer, não apenas a cidade de Lisboa, mas também o Estoril Cascais Queluz Sintra bem como toda a Estremadura.

“Vão à Europa?” Esta foi a primeira grande surpresa que tive durante a minha estréia portuguesa. “Ué, aqui não é a Europa?” “Quase!” Respondeu o Monteiro a sorrir. Somente algum tempo depois foi que fui me inteirar do porquê daquele quase. Mas isto é assunto que só caberia noutra crônica. Por enquanto, basta gravar estas três palavras: Pirineus, mouros e navegações. A segunda surpresa que o Monteiro me proporcionou foi quanto ao uso, ou melhor, ao não uso do gerúndio em Portugal. “Estão a gostar?” “Ficaram a conhecer bem o Castelo da Pena?” “Estão a ver as ruínas do Castelo dos Mouros?” Mais um tema para uma nova crônica. Por ora, é suficiente saber que fomos nós, brasileiros, que abusamos desta forma verbal, influenciados por idiomas adventícios.

Infelizmente, vou ter de fazer algumas restrições à competência do meu primeiro amigo em terras lusitanas, embora reconheça que estarei a ser um pouco injusto para com ele. É que as informações históricas que hoje eu detenho acerca da terra do Monteiro são, seguramente, dezenas de vezes mais ricas e precisas do que as dele próprio. Mas reconheço que seria exigir demais; algo assim como se alguém desembarcasse no aeroporto do Recife, tomasse um táxi qualquer e pedisse ao motorista que ministrasse uma aula sobre Maurício de Nassau e o domínio holandês no Brasil.

Então, o Monteiro não explicava – e nem haveria como – que no Mosteiro de Alcobaça estava situado o túmulo da desditosa Inês de Castro, ao lado dos restos mortais do seu amante apaixonado, Dom Pedro Primeiro (primeiro lá para eles, entenda-se, porque o nosso só nasceria 473 anos mais tarde); que o Mosteiro da Batalha foi mandado construir por Dom João Primeiro, marido da rainha Fillipa de Lancaster (e eu não teria hoje uma filha com este nome se, quando voltei ao Brasil, não tivesse ido estudar a história portuguesa); que naquele quarto do Palácio de Queluz - aí sim – nasceu e morreu o nosso Pedro I; que... São tantas as preciosidades que o Monteiro não contou, que tenho dó dos meus companheiros de viagem por não haverem reiterado, como eu reiterei, mais meia dúzia de vezes aquele mesmo roteiro.

Em compensação, nunca encontrei em Portugal, nem no Brasil, nem nas dezenas de países onde já estive, um gourmet igual a ele. Numa manhã de Domingo, ele nos levou mais uma vez para Cascais e fomos almoçar a um restaurante sobre cujas mesas repousavam braçadas de mariscos. Os crustáceos eram fresquinhos como flores recém-aparadas. Eu gosto mais de lagostas e de camarões frescos do que (ia dizendo de mim mesmo, mas reconheço que seria um pouco exagerado), do que... Tudo! Ao lado deles jaziam, sobre cada mesa, duas garrafas de Bucelas. Sentamo-nos a uma delas e eu fui ao vinho, às gambas e aos lavagantes como se estes fossem os únicos exemplares remanescentes na face da Terra.

Para ser exato, entornei, sozinho, duas garrafas de Bucelas e devorei boa parte dos camarões e dos lagostões. Já fiquei embriagado na Europa inúmeras vezes, mas naquele Domingo o Monteiro teve de cobrar taxa de entrega em domicílio, porque sem ele eu jamais teria chegado ao meu quarto no Hotel Flórida, à rua Duque de Palmela, 34. Noutra ocasião, ele nos levou a almoçar a Sintra numa espécie de taberna decorada à moda medieval. Foi uma festa para os olhos, mas sobretudo, para o paladar e para aquela minha devoção quase fanática ao deus Baco. Descemos por uma escadaria íngreme e, subitamente, deparamos com um ambiente parecido com aqueles descritos nos romances de Alexandre Dumas. As paredes eram revestidas com garrafas de vinho de todas as marcas cores safras idades rótulos buquês e sabores que se possa imaginar. O chão – entremeado de tonéis - era ladrilhado com imensos tijolos de barro cru. Tudo isso junto com o ambiente refrigerado transmitiam uma sensação de umidade que não havia. Pendiam do teto, como balões ornamentais nas nossas festas juninas, enormes pernis de porco defumado que lá atendem pela graça de presunto (presunto, lá, é fiambre). Enormes embutidos como linguiças, chouriços, salsichões e salames davam voltas pelo vão livre das paredes onde não havia garrafas de vinhos, e pareciam gigantescas serpentinas comestíveis; o cheiro fazia encher a boca de saliva até de quem estivesse sem apetite. Sair dali sóbrio e mal alimentado seria mais difícil do que encontrar homem menstruado.

Se eu não tivesse retornado mais a Portugal e alguém me pedisse informações sobre o país, só poderia responder com estas palavras: “aquilo não é país, é antes um gigantesco bebedouro e comedouro à beira mar plantado”. É o que devem estar a dizer os meus três companheiros de viagem que ainda não alcançaram a graça de voltar para lá. E tudo isso, graças ao Monteiro. Cadê ele, hein?

                                                      Raymundo Silveira[2]



[1] Capítulo do livro “LOUCA UMA OVA” – Prêmio Literário Para Autores Cearenses – 2010.



[2] Raymundo Silveira é médico e escritor. Durante onze anos foi membro do Conselho Editorial da Revista FEMINA, onde publicou artigos científicos. Tem também trabalhos publicados em outras revistas e livros médicos. Suas atividades na literatura convencional tiveram início com o advento da Internet. É membro da SOBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores). Em 2010 ganhou o Prêmio Literário Para Autores Cearenses, com o livro de contos e crônicas: “Louca Uma Ova”. Em 2011 recebeu o Prêmio Nacional de Conto e Poesia “Correio das Artes 60 Anos”, promovido pelo governo da Paraíba, com o livro de contos “Lagartas-de-Vidro”. Foi um dos contemplados com a Bolsa FUNARTE de Criação Literária – 2010, com o livro “Medicina Crônica”. Com esta obra venceu o “Concurso Literário de Fortaleza”, no ano de 2012.

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