Dr. Raymundo Silveira - Médico e Membro da SOBRAMES-CE
AS ENTRANHAS DA ALMA[1]
“Mens immota manet,
lacrimae volvuntur inanes”.
Virgílio,
Eneida 4.449
Hospitais de Pronto Socorro são vitrines escancaradas das entranhas da
alma. Diferem de qualquer outro ambiente de convivência humana. Lá, os
contrastes são estruturais; nunca conjunturais. O Pronto Socorro é uma tristeza
alegre, uma beleza feia, uma suavidade áspera, um desejo rejeitado, um aroma
malcheiroso, uma resignação revoltada...
Coexistem lado a lado a dor e o prazer, o amor e o ódio, a bondade e a
maldade, a esperança e o desengano, a vitória e a derrota, a felicidade e a
desgraça. Guerra e Paz. Inferno e Paraíso. O Pronto Socorro é tudo. Inclusive –
ou principalmente – incerteza. Só não é neutralidade e indiferença. Nessa perspectiva ele é o reflexo perfeito da
vida real.
O hospital difere ainda conforme as horas do dia e de acordo com o que se
vai fazer lá. Para os funcionários recém-chegados é sempre cedo. Para estes é
tranquilo ou caótico; cordial ou agressivo; ruidoso ou silencioso. Para os que
saem é sempre tarde. Nada mais, porém importa. Você sai cansado, mas com aquela
euforia típica de quem cumpriu o dever. Muito mais que isso. Você confortou o
seu semelhante; aliviou-lhe a dor. O hospital para você é triunfo. Não raras
vezes, triunfo com sabor de manjar do Céu, porquanto sobre a morte. Para os pacientes internados, noite e dia não
existem. Já os visitantes, nada enxergam; apenas veem. E interpretam tudo
errado. Você e eu já estivemos lá em todas essas circunstâncias.
2
Naquele Dezembro do ano de sua formatura você se encontrava de plantão há
trinta e seis horas. Um colega rico lhe pagara para emendar o turno dele com o
seu. Quando você chegou, a silhueta do hospital dava adeus à claridade do dia
exibindo contornos sombrios; sem estilo arquitetônico definido. Suas linhas eram o oposto do que acontecia lá
dentro - réplicas da mais fria indiferença.
Há pouco, prestes a sair, a improvisada sala de repouso era para você a
ante-sala da esperança. À alegria do dever cumprido, somavam-se as expectativas
da festa de formatura. Bastou um minuto de telefone para tudo virar desespero.
De súbito, o quarto se deformou em delegacia cela calabouço cadafalso... E
nesse corredor da morte a sua existência retrocedeu: Sala de aulas creche
berço. Os braços da sua mãe. Útero... Ou, quem sabe, ante-sala do inferno. Para
mim, que chegava, era manhã ensolarada de primavera. Para você, que saía,
trevas e tempestade. Tenho de confessar, para ser sincero, que toda a sua cota
de paz e de alegria se difundiu para dentro de mim. Não por ter acontecido com
você, mas por não ter sido comigo.
3
O leito não me comporta; eu e ele temos quase a mesma envergadura. Feito
sob medida para o meu corpo. Esta idéia me traz uma livre associação com um
esquife. Meu peito imita a parede de uma central de computadores, tamanho o
emaranhado de fios. Da parte traseira e de sobre a minha cabeça um som agudo,
repetitivo, intermitente, irritante faz bip, bip, bip nos meus ouvidos, mas o
cérebro interpreta como gotas de vida se escoando de uma torneira mal fechada.
Tenho as veias dos braços transfixadas por agulhas e borrachas. Uma
espécie de prensa de colar madeira abarca parte da minha pelve entre a virilha
e o quadril. De vez em quando vem um enfermeiro apertar mais. A dor é
insuportável. A intenção é vedar um furo aberto na minha artéria femoral, por
onde penetrou um cateter a caminho do coração. Tatuagens arroxeadas
decoram-me o tronco e os membros inferiores. São hematomas - resultado da
infusão de inúmeras drogas, ou da tentativa de. Enquanto isso, aguardo
apavorado o resultado do cateterismo para saber se serei ou não operado a céu
aberto.
4
Valeu a pena estar cansado, conquanto há algumas horas estivesse muito
triste por não ter sido capaz de ressuscitar um morto... Frustrado por não ser
o Homem da cruz. Criança atropelada. Ausência de reflexos pupilares. Coração,
ruídos respiratórios, nada. Mesmo assim, você fez massagens cardíacas,
respiração boca a boca e examinou de novo. Reprimiu a emoção, comunicou aos
pais e encaminhou o pequeno cadáver ao IML.
Não apenas ossos, como também carne, sangue, suor e lágrimas do ofício.
Sacudindo a quietude do repouso médico, a invasão das estridentes e
insistentes chamadas. Redemoinho às avessas. Você tateou um alô
desprevenido. Era (do Inferno) da diretoria.
Você tinha de ir imediatamente. Impossível repor o fone. Tremor, suor gelado.
Tonteira, cegueira, baticum. Sufocação. Desespero. Pavor... Ouvia sem
escutar. Repudiava o resto. Esperançava
um trote... Isso: um trote.
Não podia ser verdade... Ódio acumulado. No espelho, você arregalou os
olhos. Caminhou em círculos pelo quarto, sem perceber. E só caiu na realidade
ao constatar o fone pendurado pendulando balançando feito um enforcado.
O pânico acrescentou um abatimento abissal. Há vinte e cinco minutos
havia futuro. Vinte e cinco anos.
Decente, honrado, esperanças, sonhos, glórias. Comemorações. Colação de
grau. Você se preparava para os festejos. Missa
em Ação de Graças. A cerimônia. Baile. O terno financiado em dez parcelas
mensais sem entrada. Dureza. Você tinha de aceitar a mesmice do exíguo
cardápio. Aquele eterno cachorro quente com gosto de jornal amassado.
Disfarçava o puído da camisa. Dormia em colchão no chão. Humilhações,
descrédito. Visionário. Teimosia. Você aguentou firme. A vitória logo ali... A
Vitória.
5
Quando você entrou, correndo risco de morte e sentindo muita dor,
experimentou alívio imediato. Foi medicado operado bem cuidado e chegou o dia
da bendita alta. Então, o hospital era belo. Contudo, a sua felicidade foi
muito maior do que qualquer parente imagina. Ou imaginaria, pois ninguém ainda
soube do que você passou. Você se encontrava sozinho, no exterior. Adoeceu de
repente. A dor era tamanha que não houve sequer como se comunicar com a
seguradora que, por sua vez, não segurava coisíssima alguma. A não ser o seu
dinheiro. Agora tudo já passou. O hospital o socorreu tratou curou. Há uma
conta enorme a quitar. Para sua sorte o governo estrangeiro bancou todas as
despesas. Ainda que tivesse com que pagar, você não desembolsaria um centavo.
Nem no seu próprio país você teria tamanha regalia. Você É eu. E
eu É você. Estamos felizes. O Hospital é a felicidade.
6
Por que comigo, meu Deus? Trocar o plantão, vender o descanso. Por que
não com o outro? Rico, pais influentes, parente de político importante. Maldita falta de dinheiro! Ânsias de voltar no tempo
impossível. Falta coragem. Falta tudo. Como agir? Com quem contar? Socorro! Tio
longe desde o vestibular. Mais por
imposição daquela agitação, estudos, noites em claro, a puta lutalabuta.
Desculpa racionalizada. Boa gente, o velho. Localizar pelo catálogo. Aquele só
de endereços. Nem o nome da rua. Decerto se mudara. E pouco poderia fazer. Da
polícia era, mas há anos encostado por invalidez.
Colegas, nenhum confiável. Ajudar, prestar solidariedade, Samaritanos,
Cirineus? Sim! Mas só para a mídia. A concorrência feroz não permite rasgos de
generosidade. No íntimo gozavam. Telefonavam-se, espalhavam a sua infelicidade
aos milhões de ventos. Uma peça a menos no tabuleiro de xadrez. Xadrez, xadrez.
Conversas veladas escondem a satisfação. Príncipes, filhos de Asclépio, irmãos
de Hígia e de Panacéia. Incapazes de tamanha mesquinharia! Só no subconsciente.
Quase no inconsciente. Negar ajuda é repugnante. A idéia é repugnante. Imprensa
em manchete, edição extra. Situação crítica, irreversível. Liquidado! Coitado,
não tem mais futuro como médico. Nem como aplicador de injeções será de valia.
Talvez nem como gente. Pena. Não é pra menos. Necessário amparar: companheiros
de estudo, de trabalho... Amigos. Acima de tudo cristãos. Cristãos. Cristo. Ah,
Jesus, não é possível! Não pode ser verdade... O hospital é desgraça. A
desgraça.
7
Gente
trepada até nas marquises. Refletores, câmeras, unidades móveis dos principais
jornais, das estações de rádio e de TV. Viaturas da polícia. Um camburão. Um
rabecão. Exagero. Nada consola. Nenhum auxílio. Solidão absoluta. A entrada
principal do hospital se torna um mar de cabeças. As pernas fraquejam. A
síndrome do pânico volta. Dentro, um campo de batalha: fígado intestinos
estômago pulmões. Diafragma contra o resto do mundo... Tudo se revira.
Revolução. Você expele em golfadas o que tem, e até a alma que nem sabe se
tem... Desiste. Não prossegue. Faltam meios para pagar sozinho o estipêndio de
culpa que o clamor popular reivindica. Deus! Tio, me ajude! Mas venha logo pelo
amor de Deus... A multidão. Acendem-se
as luzes. Câmeras. Ação. Um filme policial onde você é o bandido. Sim, lá
está... Empurrões. Xingamentos. Tem mesmo cara de assassino. Vamos dar um jeito
nele agora. Justiça! Seis soldados formam um cordão de isolamento. O populacho
apupa: Solta Barrabás! Crucifica! Sim. Você se sente tão sem culpa que,
no íntimo, se compara com o Homem da cruz. Mas a platéia não perdoa: Canalha
Monstro Assassino!
8
A voz
implacável, reverberando, esganiçada, aos berros, maldita, saída daquele
maldito telefone, julga sentencia executa. O diretor possesso: Ligaram do
IML. Um auxiliar de necrópsias. O legista nem consegue falar. A notícia é
arrasadora. O atropelamento que você enviou para lá... Deu zebra. O menino estava vivo. O doutor fez
o talho da autópsia e...
9
Nada no hospital sucede como num relato convencional: linear, ordenado,
certinho. Sequência lógica, feito romance de Balzac ou conto de Poe. Não! Não
há simetria nenhuma no dia a dia de uma clínica de emergência. As pessoas
ignoram a maior parte do que está ocorrendo e do que vai ocorrer. Não raras
vezes, até consigo próprias. E isto não incide apenas sobre os doentes e
familiares... Com os médicos, estudantes e funcionários, o mesmo acontece. No
Pronto Socorro, excetuando a morte, nada também é conclusivo. Nem existem
começo meio e fim. É mais ou menos como nessa história...
[1] Capítulo
do livro “Lagartas-de-Vidro”. Prêmio
Concurso Nacional de Contos e Poesias
“Correio das Artes” – Paraíba – 2010.
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