A POSSUÍDA (Conto)
“Não importa que não
me acreditem, mas só digo a verdade – mesmo quando ela é inverossímil”.
Mário de Sá-Carneiro:
A Confissão de Lúcio
Era casada, a
Possuída. Muito bem casada. E não sabia. Eu tampouco sabia que ela não sabia.
Decerto a inconsciência da sua situação conjugal, levou-a a se envolver comigo.
Paixão recíproca e avassaladora. De súbito, e sem qualquer motivo aparente, me
ignorou como se jamais tivesse sequer me conhecido. Só ao comparar o seu comportamento
atual com o anterior, e reler as cartas que me escreveu, descobri que estive
apaixonado por uma pessoa que nunca existiu antes. Tratava-se de algo que
também nem existe mais. Não passava de um clone avariado e desgarrado que se
recuperou e reverteu à matriz.
Sentindo-me mais perplexo e curioso do que decepcionado e
saudoso, decidi investigar tudo com máxima isenção emocional. Estudar uma
doença desconhecida como um pesquisador, dela recém-curado. Fui aos livros.
Primeiro, aos científicos. Não encontrando nada pertinente, recorri à
literatura fantástica. Três obras me chamaram a atenção: “O Horla”, de
Maupassant; “William Wilson”, de Poe; e “O Duplo”, de Dostoievski.
Concluí, em primeiro lugar, que a chamada “verdade”
cartesiana não passa de mais uma ilusão; uma religião cuja deusa é uma duvidosa
“razão”. Concluí também que a Possuída foi um ogro que devorou um naco
apreciável dos meus sentimentos mais profundos, sem que eu e ela nos déssemos
conta disso.
Ignoro a que se deve o ato falho que o inconsciente me
impingiu ao nomeá-la “Possuída”. Pois em verdade foi ela quem me possuiu. Trago
um computador de neurônios que é a minha perdição. Terrível e prodigiosa, a
memória quase me destruiu.
Começou com um inocente louvor à sua beleza, ao qual ela
reagiu com um sorriso maroto e convidativo. Foi o bastante para a represa
arrebentar. Não esqueço um só detalhe. Das alucinantes carícias, à loucura de
me vestir com o avesso das suas entranhas mais tenras, macias e aconchegantes,
a ponto de imaginar que jamais me desnudaria. Das cavalgadas, ora em choutos,
ora em galopes, sob o seu absoluto domínio, às estranhas e inéditas
experiências a que me submetia. Como aquele furor de alternâncias entre dois
abrigos vizinhos, embora me implorasse para chover no seu rosto. Das palavras
divinamente sujas de fêmea inteligente e vadia, aos estremecimentos, quase
sincopais, ao me deglutir e regurgitar em ritmo crescente, até me esvaziar
literalmente de tudo.
Algumas das suas falas menos obscenas durante os atos de
amor, ainda geram calafrios:
“Então, vem… chupa ela bem gostoso…”; “… Delicioso…”;
“começa passando a língua, depois morde devagarinho o g…”; “…assim… me segura pelo quadril, e me chupa
até eu gozar na tua boca…”; “enquanto você me chupa, vou subindo e descendo a boca
nesse c. tesudo… agora enfio ele até a garganta…”; “agora passa ele pela b. e
pelo c. pra sentir tudo o que te espera…
me f. com a língua, vem…”… devagar, porra nenhuma…. tô com gana de você…
Mesmo doendo, sentei pra valer… vou remexer tanto, que vai doer mais em você do
que em mim…”
É o ponto extremo aonde me atrevo chegar, sem me tornar
fescenino, ou correr o risco de desmaiar… Mesmo sabendo que ela não sabe que
isto e muito mais coisas aconteceram. Pois Ela não é “Ela”. É uma esposa fiel,
como, aliás, sempre foi. Quem fazia e falava aquilo era a metade de uma mulher
sem consciência da sua outra metade. Então, me sinto na singularíssima condição
de um dissoluto que prevaricava com um fantasma… Para evitar palavras mais
contundentes e absurdas, tais como: um estuprador seduzido pela própria vítima
que, por sua vez, nunca existiu. Este redemoinho de loucuras me trouxe a mais
firme convicção de que o ser humano é uma cratera sem fundo aberta por um
meteoro de carne na epiderme do universo.
Capítulo do livro “Contos de Alcova”.
Raymundo Silveira é médico e escritor. É membro da SOBRAMES
(Sociedade Brasileira de Médicos Escritores). Em 2010 ganhou o Prêmio Literário
Para Autores Cearenses, com o livro de contos e crônicas: “Louca Uma Ova”. Em
2011 recebeu o Prêmio Nacional de Conto e Poesia “Correio das Artes 60 Anos”,
promovido pelo governo da Paraíba, com o livro de contos “Lagartas-de-Vidro”.
Foi um dos vencedores da Bolsa Funarte de Criação Literária – 2010, com o livro
“Medicina Crônica”. E-mail: raysilveira@uol.com.br
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