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terça-feira, 26 de novembro de 2013

POR: FLÁVIO LEITÃO - A VENTURA DE GAMALIELZINHO




Dr. Flávio Leitão - Médico e Ex- Presidente da Sobrames-CE
 Caricatura- Isaac Furtado
                                                
                                A VENTURA DE GAMALIELZINHO

Os Martins do Monte tinham sua origem, como a maioria dos que habitavam aquele requintado bairro, no velho Portugal. E se isto, por um lado lhes dava uma certa superioridade e lhes permitia uma posição sobranceira, por outro lado, lhes deixava meio inibidos. Não se aventuravam muito a perquirir origens. Quem sabe tivessem seus ancestrais sido “degredados filhos de Eva”, que o Senhor Rei banira, num ato de colérica majestade?
De qualquer modo, ou por pura sorte, ou por real mérito, a família toda era considerada e não havia desvelada mãe que não tentasse o acasalamento de suas filhas com um dos inúmeros varões da Martins do Monte. 
A matriarca tinha estranho nome que o pai, rico latifundiário, na paucidade dos seus conhecimentos, lhe dera – Rimada. Chamavam-na, na intimidade, carinhosamente, Dª. Rima, dourava-se, assim o esdrúxulo nome. O apodo rimava com o lindo rosto, onde expressivos negros olhos separavam um gracioso e arrebitado nariz, a tez morena como se fora misteriosa moura, o todo de mulher que sabe impor sua vontade pela sabedoria e pela coragem: uma senhora! Habitavam um casarão totalmente rodeado por trabalhadas colunas romanas, de puro mármore, que o avô trouxera diretamente da Itália e que sustentavam um largo alpendre, onde a meninada toda fazia suas estripulias, sem chegar a quebrar, com indesejável freqüência, ricos biscuits. 
Para maior pomposidade da casa dos Martins do Monte, o engenheiro a construíra elevando-a do chão, de modo a deixá-la mais alta que todas as outras residências da redondeza, encimada que estava sobre um porão. Destinava-se o mesmo à guarda da desusada parafernália da família e era admitido, pelas crianças da região, como mal-assombrado.
Dizia-se, em rodas noturnas, de pura charla da meninada, que furtivos vultos de escravos negros, os dorsos nus e reluzentes de suor, passavam esgueirando-se pelas entradas de luz do porão, guardadas por pequenas barras de ferro trabalhado. Não havia por ali, menino que não se tivesse quedado diante daquelas entradas, os olhos hipnotizados, à procura de desvendar os mistérios que dela se contavam. Havia até quem jurasse ter ouvido pungidos ais dessas pobres criaturas, após estalidos como o de chicote ferindo rija carne.
Nunca se soube até hoje se verdade ou não! Também nenhum dos meninos se aventurara a adentrar tão soturno porão.
Julho era o mês de férias e Dª. Rima, com a costumeira paciência, fizera as malas da família e partira para a indefectível temporada no sítio da Serra. Nada mais merecido prêmio que esta viagem, para coroar a labuta diária do Dr. Manoel Augusto que sofria de sol a sol, nos foros da cidade, em homéricas contendas jurídicas, conhecido que era como um dos melhores causídicos! Não que considerasse o lugar de morada pouco agradável. Longe disto, mas o ar puro da serra, o esmagador domínio do verde, o viço indescritível da punjante flora, tudo era motivo para aquisição de energia, de revigoramento do espírito. Certamente por mera maldade, dizia-se até que o Dr. “Manelaugusto” ansiava por esse período, quando longe das contendas jurídicas, esquecidos os débitos, adquiria maior vigor sexual. O fato é que voltava toda família, numa esfuziante alegria que ia definhando, lentamente, no correr dos meses, até que novas férias viessem.
A manhã seguinte era uma dessas manhãs frescas de julho. O velho casarão se deixa ver agora, banhado pelo sol de ouro que desenhava, no espaço, fachos tremulantes de luz. Filetes de luz escoavam por dentre as copas orvalhadas das seculares árvores, que suavemente, emolduravam o pomar.
Face ao primitivismo da cidade, para completar o encanto de tão bucólica manhã, dançavam no ar, vaporosas gotículas que emprestavam um certo ar de misterioso fog londrino, impedindo que as coisas fossem vistas nas suas plenitudes, em virtude da grumosa atmosfera.
Somava-se a isto inusitado silêncio. É que ficaram no casarão apenas os dois irmãos Tadeu e Gamaliel. Ficara também Teresa de Jesus, esbelta preta, de largas ancas, sorriso puro e branco como um chumaço de algodão, na beleza estonteante de seus dezoito anos. Senhora de uma macropigia graciosa e elegante, balouçava sensual, nas passadas despretensiosas da menina mulher. Ficara, segundo ordens maternas, para providenciar o sustento dos dois queridos rebentos que tomavam aulas particulares, na tentativa de diminuir a ignorância demonstrada nas notas finais. Deixara-os a mãe, com o coração partido.
Apesar do esplendor daquela manhã, Gamaliel acordara com o coração angustiado. Faziam-lhe falta as reclamações constantes da mãe, as refregas relâmpago com os irmãos, dissolvidas sempre com a terrível advertência materna – “Deixa seu pai chegar!”. Nem o brilho da manhã o estimulava a debruçar-se sobre os livros. Olhava indiferente para o pomar, quando percebeu de soslaio, a passagem fugidia de Maria Teresa para o velho porão.
Aguçou-lhe a curiosidade...O que levaria aquela serviçal da casa a entrar no lugar menos usado da residência?
Desceu célere a escadaria que desaguava ao lado da porta do porão. Entreabriu-a cuidadosamente, evitando o rangido que as cansadas enferrujadas dobradiças certamente fariam. E a escuridão desfeita, parcialmente, de espaço a espaço, pelas entradas de ar e luz, mal permitia ver, num canto de grossas e pesadas paredes, cobertas de mofo, o perfil desnudo de Maria Teresa, displicentemente, desfazendo o penteado, numa pose que parecia ter sido roubada de Renoir,  quando criou o seu “Banhista ajeitando o cabelo”.
É preciso esclarecer que Gamalielzinho fora iniciado no mundo das artes, ainda muito criança, de modo que tinha a mania, considerada esnobe pelos amigos, de o que visse de belo, comparar com obras de famosos impressionistas. Assim, não é de admirar que a nudez de Maria Teresa o tivesse levado a uma discussão do aspecto puramente estético, trazendo-lhe à mente, um sem número de famosos pintores clássicos.
Seria de Rubens, de Degas, de Delacroix ou de Cezane que fora roubada aquela visão?
Lembrou-se do famoso quadro “Toilete de Vênus”. Não, decididamente não! Maria Teresa não era opulenta como a Vênus do famoso Rubens, nem branca. Muito pelo contrário, sua cor era mais atraente, porque o negro evocava-lhe mistério, a vontade imensa de descobrir o desconhecido, mergulhar nele de olhos fechados e deixar que a escuridão transmitisse, por osmose, todos os seus segredos, os seus mistérios...
De repente, sem saber porque, uma gigantesca onda de voluptuosa concupiscência assomou-lhe o espírito, acelerando-lhe o ritmo cardíaco, aquecendo-lhe a alma toda, impulsionando-o em direção aquele maravilhoso quadro. Percebendo a intromissão, Maria Teresa correu como uma gazela assustada, diante da iminência de ataque de maldoso caçador.
Teriam decorridos minutos, horas, séculos? A verdade é que uma corrida desesperada pelo vasto porão, travou-se. Percebeu, agora, Gamalielzinho, que Maria Teresa, propositadamente, ora se deixava quase pegar, ora se afastava lépida, com uma agilidade ferina, escondendo-se em desabalada carreira nos inúmeros cubículos que o porão possuía.
Pobre Gamaliel! Via dois rijos seios, agredindo a lei da gravidade, apontando insolentes para os céus dois negros mamilos emoldurados por larga auréola de plúmbea cor, largas ancas alternando-se em movimentos rítmicos na sensual corrida e...não poder senti-los junto a seu corpo de adolescente imberbe!
Num esforço supremo que só aos moribundos é dado mostrar no instante última da vida, Gamalielzinho vence a corrida e...finalmente exaustos, os poros excitados, se deixaram abraçar como nunca tinha Gamaliel abraçado, juntando-se tanto um ao outro que já não eram mais dois, pois que se imiscuíram numa autofagia de doce encanto.
No andar superior, o irmão mais velho, ou porque quisesse mostrar falsa cultura ou porque fosse naturalmente fidalgo, ouvia numa velha e bolorenta eletrola, uma rapsódia de Paganini. A impureza do som extraído do cansado disco de cera cheirando a bafio, e de combalidas caixas acústicas, o bater cadenciados dos címbalos, o explodir metálico dos pratos e o som estridente dos trompetes e cornetas, serviram de marca-passo à cavalgada amorosa de Gamaliel e Maria Teresa.
Os corpos ora flutuavam harmonicamente como se fossem regidos por invisível maestro, ora passavam a um ritmo tão ativo e rápido qual o som do piano que agora se sobressaia, impar, na grandiloqüência de sua beleza musical.
Vezes outras, o tom nasalado dos oboés fazia coro aos gemidos abafados de sua deusa de ébano. É verdade que ele não a queria ver como deusa. Humilde por natureza, Gamaliel achava que a um simples mortal como ele, quando muito poder-se-ia permitir um relacionamento com uma princesa. Sim, era sem dúvidas, a dona de tão divinamente esculpido corpo, uma princesa africana que viera num desses famigerados navios negreiros.
Talvez o cansaço, talvez mesmo a enebriante sensação de pós- amor, fossem responsáveis por sentimentos tão contraditórios que agora açulavam-lhe a mente. De um lado tinha figadal ódio aos que criaram os tais navios, por outro lado agradecia a Deus, compungido (com os lábios ainda trêmulos de tanto terem sofregamente beijado) o rapto daqueles negros sem o qual não estaria ele vivendo aquele momento...
 Enfim, terminada a sôfrega peleja, cessada a eletrizante coreografia daquele idílico amor, arfantes, ainda, os desnudos e suarentos corpos expostos, num torpor decorrente do natural esforço e do próprio ambiente de vetustas paredes, tendo como travesseiro os macios pelos de sua princesa, Gamaliel adormeceu num desejo de um sono contínuo, perpetuado até as férias vindouras...


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