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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

POR FLÁVIO LEITÃO - A BURETA



Dr. Flávio Leitão - Médico e Ex-Presidente da SOBRAMES-CE

 A BURETA


Publicado em Recidivas – Coletânea da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Sobrames–CE
1998



No início da década de 60 respirava-se clima de liberdade e nem mesmo os analistas políticos (exceção feita aos mais íntimos da “CIA”) poderiam prever que dali a quatro anos instalar-se-ia férrea e duradoura “manu militari”.

Em virtude do relativamente exíguo número de médicos existentes no País, os diletos discípulos de Hipócrates gozavam de elevado apreço.

Estavam longe de serem comparados ao sal – “branco, barato e encontradiço com a maior facilidade”, no debochante dizer de autoridade máxima do Estado, há não muito tempo.

Como aspirantes à vida hipocrática julgavam-se, senão tão importante se julga um cadete de Agulhas Negras, pelo menos como um cabo de destacamento de erma cidade do interior, orgulhoso de sua função de defender a ordem e a moralidade cristãs.

Estudantes de medicina eram, por conviverem quase diuturnamente, muito irmãos, de modo que embora fossem as colegas de turma graciosas pela condição natural de serem jovens umas e realmente belas outras, não incursionavam, senão esporadicamente, no coração das mesmas, movidos tão somente, pelo instinto natural, pois que os hormônios naquela idade costumam agir assim.

Estudavam por vocação e porque a obtenção de algum conhecimento médico abrigava-os todos a passarem noites indormidas, longas madrugadas insones, debruçados sobre volumosos livros de incomensurável doutrinação médica.

Não levavam muito em consideração a inteligente e mordaz observação do piedoso carmelita descalço Frei Josepe Índio que comiserando-se com o triste final do genial criador dos Lusíadas relatou, após visita ao leito do miserável moribundo: “Que aviso tan grande para los que de noche y dia se cançan, estudiando sin provecho, como la araña em urdir telas para cazar moscas!”.

Os professores eram fidalgamente respeitados, mesmo os que não tinham uma cultura extensa e que, por pura maldade, já tivessem sido colocados em algum aperto, com elaborada pergunta de resposta previamente conhecida.

Dentre os mestres havia um, professor Zabulon, com traços nítidos de cientista. Homem tranqüilo, bom, jamais fôra visto esbravejando. Falava baixo, pouco se importando que os irrequietos alunos estivessem ou não atentos às suas palavras.

Proferia sua aula, andando lenta e ritmadamente, de uma extremidade à outra do tablado do anfiteatro.

Entre os dedos encardidos pela nicotina, mantinha, constantemente, um cigarro de longa cinza fumacenta, raras vezes levado aos lábios.

Aí então, uma baforada maior incandescia o aparente apagado cigarro, que deixava cair no solo a tortuosa cinza, que se espatifava em fina poeira preta, confundida com a maltratada cor do piso da sala de aula.

Aferia o conhecimento da turma por mera formalidade acadêmica obrigando-os, um a um, a fazerem reações químicas que haviam sido apresentadas em aulas práticas.

Não se importava muito com o resultado final de tais reações, mas tinha cioso zelo absoluto pelo material de laboratório, que ele adquiria às suas próprias custas ou através de raras e benfazejas doações de amigos seus do mundo industrial.

Descobrira, de modo simples e pouco dispendioso, fazer chover numa região secularmente acostumada a sofrer longos e tediosos períodos de seca.

Destruía o cepticismo dos mais incrédulos avisando, com antecedência que faria chover a uma determinada hora e que, para mostrar que não era coincidência, faria chuva de cor azul.

E, na hora aprazada, para estupefação dos incrédulos, banhava a Praça do Ferreira tropical tempestade-relâmpago, de cor estranhamente azul, logo transformada em caudalosos e lodacentos córregos que desapareciam céleres nas sequiosas goelas do lobo.

Abrigava aquela turma de futuros médicos uma aluna de avantajado porte, sorriso fácil, de rica e alva arcada dentária que contrastava com a tez de reluzente ébano.

 O pai batizara-a com bíblico nome de homem, mas que a ignorância religiosa da turma não chegou a perceber – Neftali. Por preguiça ou carinho, chamavam-na mais por “Néfi”. Caminhava balançando os largos quadris, movimentando grossos braços, como se dançasse sensual rumba latina, herança de seus antepassados, que na virgem África, dispondo de pouco vocabulário, comunicavam suas alegrias e tristezas com inigualável ritmicidade, através do surdo som dos atabaques e tambores.

Os companheiros não a tinham na conta das mais inteligentes, talvez por mera maldade, ranço atávico de indesejável preconceito de cor, coisa de jovens, esquecidos de suas verdadeiras etnias.

Eis que chega-se ao fim do ano letivo pois que a vida corre célere, esvai-se num átimo, e há que se cumprirem certas formalidades.

O Prof. Zabulon, geralmente indiferente às exigências da burocracia universitária, curva-se à necessidade de uma avaliação formal de seus alunos. Assim, pitando seu indefectível cigarro, faz os estudantes, um a um, realizarem testes com as mais variadas substâncias.

Como já lhes disse antes, pouco se importava com o resultado de tão complicadas combinações químicas, queria, isto sim, proteger seu tesouro científico, a parafernália que lhe havia permitido fazer chover mesmo que a Natureza teimasse em deixar sequioso d’água o ensolarado sertão cearense.

Disto era sabedora também Neftali, pois para estas artimanhas ela era bem expedita. Assim, simulou fagueira a mistura de algumas reações e rapidamente, para se ver livre de tão estressante prova, comunicou com soberania: - Pronto, professor. Deu vermelho. Ao que o velho Zabulon indiferente, com péssima dicção que possuía, perguntou em contrapartida: Neftali, lavou a burêta?

Neftali respondeu, entre ofendida e condescente – Professor, eu sou uma moça limpa. Quando saio de casa tomo banho!

 

                                                                                 Flávio Leitão

POR CELINA CÔRTE - O 27 DE JANEIRO DE 2013



 Dra. Celina Côrte Pinheiro - Médica e Presidente da SOBRAMES-CE
                              

                                          O 27 DE JANEIRO DE 2013 
   
                            Artigo publicado no jornal  O POVO do dia 5/02/2013
   
            Deveria ser um domingo, como tantos outros, em que jovens curtem a ressaca de uma noite festiva na balada, quando trocaram beijos, abraços e passos de dança ao som da banda da moda. Contudo, não foi assim! O dia 27 de janeiro de 2013 amanheceu enlutado no país inteiro por conta do ocorrido lá em Santa Maria-RS. O lá ficou próximo de todos nós face à fatalidade incluindo tantos jovens recém despertados para a vida. Simplesmente curtiam as alegrias próprias da juventude. E não tiveram o dia seguinte para relatar tudo o que de bom acontecera na boate. Restaram apenas seus familiares sentindo na mente e no coração a dor de uma partida, sem despedidas e sem retorno previsto. Não apenas o Brasil caiu em estado de estupefação. Todo o mundo comentou e se perguntou como é que ainda acontecem coisas assim, em pleno século XXI. Acontecem e continuarão a acontecer, enquanto não adquirirmos a cultura da prevenção de acidentes e continuarmos a acreditar que fatalidades advêm apenas aos outros. Embora a tristeza tome conta de todos nós, é obrigatória a reflexão sobre o ocorrido. As responsabilidades devem ser investigadas e, com certeza, não se restringem a um pequeno grupo de pessoas ligadas diretamente ao recinto onde acontecia a festa. Outros, caso tenham consciência, estarão agora arrependidos por não terem sido mais rigorosos na fiscalização de acordo com as exigências da lei. Deram um jeitinho, levaram na brincadeira suas responsabilidades, na certeza de que nada ocorreria. Quiçá hajam se vendido, não por trinta dinheiros, mas até mesmo por uma garrafa de uísque falsificado para considerarem tudo de acordo com as normas técnicas.

            Não temos a cultura da prevenção e subestimamos as possibilidades de agravos. Acreditamos que nada irá acontecer e dormimos tranquilos. Quantos de nós, ao entrarmos em locais públicos nos preocupamos em examinar o entorno à procura das saídas de emergência ou possibilidades de evasão? Quantos de nós sabemos operar um extintor de incêndio? Quantos de nós sabemos que há diferentes tipos de extintores para situações específicas? A utilização de um extintor inadequado pode agravar o problema. Hoje, tão comuns os condomínios. No nosso, há pessoas treinadas para agir corretamente no caso de um sinistro? As questões são inúmeras e convém refletirmos sobre elas.

            O infortúnio recente revela os riscos a que nos encontramos sujeitos. Não devemos apenas lamentar o ocorrido, mas sermos mais cautelosos, mesmo nas situações mais comezinhas, capazes de produzir sérios agravos à integridade física individual e coletiva.
                                                                                                
                                                 Celina Côrte Pinheiro




terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

POR WILLIAM HARRIS - PONTUALIDADE BRITÂNICA


                                    
                                        William Moffitt Harris 2



 Durante um curso de que participei por dois meses e meio na Inglaterra, no início da primavera de 1977, tive a oportunidade de vivenciar pessoalmente como os ingleses levam a sério esta questão de pontualidade. 3

       Éramos quarenta e dois alunos oriundos de vinte e cinco países: venezuelanos, mexicanos, chilenos, guianenses, panamenhos, indianos, paquistaneses, chineses, nigerianos, etc.. Do Brasil, além de mim, havia uma educadora de Brasília. O curso foi coordenado por um sociólogo holandês que havia morado por dez anos em São Paulo. Sua esposa era chilena e também participava do curso.

         Como parte do programa, fizemos uma visita a um hospital dito comunitário, distante a cerca de quarenta minutos de ônibus do campus da Universidade. Fomos informados, uns três dias antes, que o ônibus da linha que iríamos apanhar partia exatamente às 9h02min. Não poderíamos nos atrasar porque o seguinte só passaria lá depois de meia hora. Resolvi conferir. Acertei meu relógio pela BBC em sua TV e, no dia seguinte, dei uma “escapadinha” do seminário, vi uma plaquinha pregada no poste da parada de ônibus com os horários das várias linhas que passavam por lá e aguardei o tal veículo. Chegou um pouco  mais cedo, mas partiu exatamente às 9h02min.

         No dia e hora marcados, faltaram uns dez alunos para apanhar aquele ônibus. Ao chegarmos ao hospital, lá estava o Diretor com parte de sua equipe nos esperando no saguão de entrada. A cena que presenciei, em seguida, foi constrangedora. O Coordenador ficou rubro como um tomate, desculpando-se pelo atraso dos faltosos, assumindo inteiramente a responsabilidade. Foi algo demorado e marcante, bastante formal. Deu como desculpa que, em nossos países sul-americanos, havia sempre uma margem de tolerância para eventos daquele tipo e que um pequeno atraso de 10-15 minutos era considerado bem normal.

          Pensei, na época, com meus botões: “... é que este pessoal não sabe como trabalha o tal do Dr. William".  Eu marcava a reunião periódica com os médicos-chefes dos Centros de Saúde da Prefeitura da zona oeste de São Paulo para às oito e depois das oito e meia ainda havia gente chegando, bocejando e esfregando os olhos de sono ou com o cabelo molhado do banho que acabara de tomar. ”Comia a orelha” dos caras lá mesmo. Eu procurava dar o exemplo chegando às 7h30min e, ainda, vindo de Campinas, a cerca de 100 km de São Paulo.

         Outro episódio que ficou para sempre na minha memória ocorreu em um dos passeios a Londres, em que eu geralmente ciceroneava meus colegas de curso, embora nunca houvesse estado lá.  Resolvi observar o fechamento de um grande supermercado. Dez minutos antes das 17h, soou um aviso pelos alto-falantes informando que a loja encerraria suas portas naquele horário e que todos os fregueses tinham que se dirigir imediatamente aos caixas. Ficamos do lado de fora observando o movimento. Quando bateram as 17h, as mocinhas dos caixas completaram apenas o atendimento dos fregueses que passavam suas compras, simplesmente desligaram e cobriram suas máquinas registradoras, apanharam suas bolsas e foram embora. Havia ainda algumas pessoas nas filas das caixas. Ficaram sem ser atendidas.

          Um fato que me impressionou positivamente em outro supermercado, embora como sanitarista compreendesse bem as razões do que estava acontecendo, foi quando observei um funcionário recolhendo os frangos dos balcões e os jogando no fundo de um latão num carrinho de mão. Perguntei a ele se estava atuando dentro de uma rotina de trabalho. Respondeu-me afirmativamente e explicou que os frangos já tinham estado expostos por quatro horas e, portanto, precisariam ser incinerados. Apontava um tanto apreensivo e nervoso para o relógio na parede da loja.



                                                             ***


1 - Apresentado na 97ª tertúlia literária do Movimento Médico Paulista do Cafezinho Literário – MMCL realizada em S. Bernardo do Campo em 4/abril/2009 e na 102ª realizada em Taubaté em 06/junho/2009. Foi também apresentado na reunião da “Academia em Poesia” da Academia Vicentina de Letras, Artes e Ofícios “Frei Gaspar da Madre de Deus” de S. Vicente - SP em 13/abril/2009



2- (Dados atualizados) Pediatra Sanitarista. Prof. Dr. (aposentado) da Faculdade de Saúde Pública – USP. Fundador (05/05/05) e Coordenador Estadual do Movimento Médico Paulista do Cafezinho Literário – MMCL. Membro Titular ativo da Associação Brasileira de Médicos Escritores – SOBRAMES desde 2003, nível central SOBRAMES-BR, níveis regionais SOBRAMES-PE, SOBRAMES-RS. Membro Honorário e Titular da SOBRAMES-CE. Dissidente e separatista da SOBRAMES-SP. Membro Correspondente da Academia Maceioense de Letras. Sócio Titular da Associação Paulista de Medicina e Associado da Associação dos Médicos de Santos. Membro Associado da Academia Vicentina de Letras, Artes e Ofícios “Frei Gaspar da Madre de Deus” de S. Vicente – SP. “Padrinho” do MLSS - Movimento Literário Saberes e Sabores de S. Gonçalo do Sapucaí – MG.


3 – O Curso levado a efeito no IDS - Institute of Development Studies da Universidade de Sussex na cidade de Falmer, a uma hora e meia de trem de Londres, chamava-se “Planejamento de Saúde com Participação da Comunidade”, tema este muito em moda no Leste Europeu, na Ásia e avançando pela América Latina afora. Fui comissionado pela Prefeitura de São Paulo onde ocupava cargo de chefia técnica e de direção e financiado pelo Conselho Britânico de São Paulo. Essa era a primeira e única vez que viajei para a Inglaterra, mas tive a nítida sensação de lá ter estado antes, pois conhecia muitos lugares onde levei meus colegas do curso, inclusive detalhando fatos históricos. Isto aconteceu porque fui criado num ambiente britânico em São Paulo e fui muito influenciado pelas atividades culturais, reuniões festivas em casas de famílias britânicas, escola britânica, clube, igreja, cerimônias, bazares, desfiles maçônicos e anglicanos, programas de TV (viagens, acontecimentos políticos, etc.). Realço aqui a grande influência cultural do Papai que cobrava o conteúdo de livros que nos dava para ler e nos relatava a vida e contexto das obras e seus autores. Sou o que chamam de Anglo-Brazilian, abrasileirando-me somente quando fui morar em uma pensão durante a faculdade, quando aprendi a comer feijoada, tomar caipirinha e beber um cafezinho...


POR SÉRGIO MACEDO - A CIGANA

Dr. Sérgio Macedo - Médico e Membro da SOBRAMES-CE

A CIGANA                                      

Cigana sem canto

Sereia de muitos leitos, (bancos de areia)

Espuma de muitos mares

Transita serena,

Transforma

Serena sereia

De verdes ( vermelhos) e profundos oceanos,

Na face.

Transporta labirintos que seriam

Simplesmente caminhos.

Caminhos exigem tráfego,

Pensas, ( e) logo, trans-itas,

Trans-gole

Trans-nós,

Num senão transformado

Ou recém destruído em seu cerne.



Um cesto com pedaços do universo

Foi-me dado.

Eu, deus de meus limites,

Respeitado o Deus do ilimitado,

Passo pelas pontes,

Escritas pela velocidade da passagem.

Não lerei escritas antigas.



Há rostos obtusos

Ou obscenos

Nessa guerra, há pausas e moças

Há tempo correndo atrás do passado e moças

Há moças de carne e osso e alma e espírito.

Que choram e sorriem e clamam e desesperam

E morrem.

A guerra do dia só soma, só soma.


                                                           Ségio Macedo

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

POR AIRTON FERRO - DAMIÃO PEZÃO

Dr. Airton Ferro Marinho - Médico e membro da SOBRAMES-CE

              
                                           DAMIÃO PEZÃO
               Praticamente em todas as cidades, quer nas interioranas, quer nas metrópoles e até nas megalópoles,  encontramos tipos humanos bizarros, pitorescos e  até hilariantes.        
               Nas pequenas cidades é mais fácil conhecermos de perto um destes tipos citados, enquanto que nas outras maiores, temos conhecimento de um destes, em determinados pontos dos bairros, nas ruas, nas praças do Centro e até nos subúrbios.
               Gostaria de me referir ao Damião Pezão do Ipu, conhecidíssimo por todos naquela cidade, ao pé da Serra da Ibiapaba, onde  temos uma linda cachoeira de mais de 70 m de altura, que pela sua beleza, é um dos pontos turísticos daquela cidade, que segundo  o grande escritor, o maior do Ceará e ao meu ver, o maior romancista brasileiro e no gênero, o maior do Planeta; filho de Sacristia, isto é, filho do padre do mesmo nome, que foi uma grande figura política, ocupando altos postos, chegando até a senador e a Governador da Província. O notável escritor silvícola, o nº 1  no gênero: José Martiniano de Alencar Barros Filho, também seguiu os passos do pai na política. O pai depois de algum tempo, casou-se. O filho nasceu em Messejana ( Ce ), formou-se bacharel em Direito em Recife, indo para o Rio de Janeiro na época do Império, onde foi político, em vários cargos, não sendo, no entanto, tão brilhante nesta profissão como o pai. Escreveu o seu mais conhecido livro: “Iracema”, onde a protagonista da lenda do Ceará,  teve este nome tirado da palavra América, em letras alteradas na ordem, que era da grande tribo Tabajaras do Ipu. José de Alencar adoeceu de tuberculose, indo procurar tratamento na Europa e voltou ao Rio de Janeiro, onde morreu aos 47 anos, deixando todos os seus escritos naquela Cidade. Deixou o legado de mais de 20 livros com a mesma temática e peças de teatro.
                    Damião Pezão era uma figura estereotipada, de uns 30 anos de idade, com cerca de 1,70m de altura, tez queimada pelo sol, delgado, que vinha gritando pela cidade, notadamente à noite, quebrando o silêncio da madrugada da bucólica Ipu: o Damião é Coronel, o Damião é coronel, o Damião é coronel, o Damião é … e repetia muitas vezes, madrugada a dentro, indefinidamente.
Diziam que eram 2 irmãos: Cosme e Damião ( padroeiros dos cirurgiões), não sei se eram gêmeos. Ouvira falar do primeiro, não me recordando do seu tipo físico e nem se era doente também. Diziam que ambos moravam com a mãe, lá para o morro do cemitério. À noite ouvíamos o Damião falar sozinho  frases dispersas: o Damião é coronel, o Damião é coronel, o Damião é coronel… e a voz paulatinamente se aproximava, tinha seu ápice nos pés de monguba próximos à nossa calçada, onde ficava por algum tempo e saía dizendo as suas  repetitivas frases e se ia afastando gradativamente. Não nos era motivo de medo e as outras crianças apenas diziam que ele era doido, porém nunca  agrediu ninguém. Achávamos esquisito, pois andava maltrapilho, dando a impressão de sempre estar sujo e com facies empapuçado devido ao uso da cachaça, como de um alcoólatra crônico. Sabíamos que era muito pobre e naquela época, não sabia pormenores de sua saúde física e mental. Socialmente bebia a cachaça que alguém lhe oferecia e comia o sobejo que alguém lhe dava. Não sabia se era chamado de doido, devido às suas atitudes e comportamento, vestimenta esquisita, todo sujo, pelas suas frases ou era doente mental ( portador de psicose ou esquizofrenia ), ou  era somente alcoólatra ou as duas coisas. Não se sabia de seus delírios, alucinações, ansiedades e fobias. Também não se sabia  que usava algum medicamento para tratar-lhe a doença ou controlá-la. Tinha o rosto inchado e olhos empapuçados, sui generis, de etilismo crônico. Também não usava sandálias ou chinelos, andava descalço. Naquela época não havia antipsicóticos ( neurolépticos ), nem hipnóticos, nem mesmo ansiolíticos. Se dormia, era devido à cachaça ou à exaustão física. Não sei do que se passava naquela mente diferente, nem de seus sofrimentos de alienado, nem se era feliz ou infeliz, pois guardava consigo um segredo impenetrável e mítico. Era um arquétipo e estereótipo inesquecível.
Ainda soa nos meus ouvidos aquela voz que se aproximava e se afastava: o Damião é coronel, o Damião é coronel… o Damião é…ou:  faz três dias qu’eu não ca.., também eu não como!
                 Dizem que morreu de desnutrição e de tuberculose.

                                                      Airton Ferro Marinho

domingo, 3 de fevereiro de 2013

POR CELINA CÔRTE - LIXO E SAÚDE PÚBLICA

Dra. Celina Côrte - Médica e Presidente da SOBRAMES-CE


                                   LIXO E SAÚDE PÚBLICA

Publicado no Diário do Nordeste, hoje, 03 de fevereiro de 2013
DEBATES E IDEIAS

É crescente o lixo produzido no mundo e o Brasil não foge à regra. Com a melhoria da situação econômica dos brasileiros nos últimos 10 anos, aumentou a demanda/procura, tanto de bens de consumo (alimentos, bebidas, combustíveis...) quanto de bens duráveis (eletrodomésticos, carros, móveis...).

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)- Censo 2010-, a quantidade diária de lixo urbano coletado no Brasil era de 228.413 toneladas, o que representava 1,25 Kg diários por cada um dos cerca de 182.420.808 habitantes. No Censo 2012, a população brasileira saltou para 193.946.886 habitantes, o que implica também no aumento da produção de lixo. Na atualidade, falamos em reciclagem, em proteção ao meio ambiente, mas ainda cometemos erros medievais no que tange ao descarte do lixo.

Acumular lixo em qualquer lugar, sem acondicionamento adequado, sem preocupação com os dias da coleta sistemática, quando ela ocorre, é uma atitude que denota irresponsabilidade e/ou uma educação doméstica precária.

Quem assim procede, não percebe o alcance do comprometimento causado à saúde pública. Além do dano estético à cidade, multiplicam-se ratos, baratas, moscas e mosquitos, animais daninhos que provocam uma reação em cadeia, prejudicial à saúde de todos.

Em Fortaleza, a população ainda mantém uma relação bastante despreocupada com o lixo produzido. A expressão "jogar no mato" presente em nossos dias, levou-nos a definir "mato" como a menor distância entre a porta do domicílio e o restante do mundo.

Não é para ser assim!! Se a saúde é uma prioridade, mais ainda é a educação, pois, de sua falta, decorre todo o resto. Há necessidade premente de campanhas permanentes de educação ambiental com ênfase nos cuidados com o lixo produzido. Todos os meios de comunicação devem ser explorados para incutir na mente da população a necessidade de uma relação mais respeitosa com o lixo. As escolas não podem ser esquecidas como locais propícios à disseminação das ideias relativas aos cuidados com o lixo. Crianças e jovens são excelentes multiplicadores.

Cabe ao Poder Público a fiscalização, a provisão de lixeiras distribuídas pela cidade, em número e locais adequados, o incentivo ao seu uso, a coleta contumaz e a multa aos infratores. Não é fácil educar um povo, mas é possível e vale à pena!

Celina Côrte Pinheiro
médica