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domingo, 29 de março de 2020

POR ARRUDA BASTOS: Diário de uma quarentena (9º dia)

Dr.Arruda Bastos e sua esposa.
Por Arruda Bastos

Uma odisseia na terra dos vírus gigantes

No dia de hoje, após nove dias de quarentena sem colocar nem o pé fora do apartamento, resolvi, graças aos pedidos da Marcilia, aproveitar a bela tarde de sol desse sábado para nos vacinarmos contra a gripe. Pesquisamos e escolhemos para isso o estacionamento do Shopping Rio Mar Papicu, aqui em Fortaleza. O sistema drive thru, implantado para vacinação sem sair do carro, pareceu-me seguro.
Os preparativos para descer do apartamento e pegar o beco rumo ao Shopping lembrou a música “Tudo OK”, sucesso da cantora Mila, muito executada no último carnaval. A letra diz: “É hoje que ele paga todo o mal que ele te fez / Cabelo ok, marquinha ok, sobrancelha ok, unha tá ok / Brota no bailão pro desespero do seu ex / Se ele te trombar vai se arrepender / Uma bebê dessas nunca mais ele vai ter”.
Para a odisséia, tomamos banho, pegamos as máscaras, o álcool em gel, lenços descartáveis e tratamos de limpar os bolsos e as carteiras, só levando mesmo nossas identidades. Fundamentais, pois, depois que tirei a barba, poderia ser confundido com um broto, e Marcilia, com a quarentena, cada vez fica mais bela e jovem.
Depois de passar pela barreira do elevador usando muito álcool em gel nos botões e na porta, chegamos ao nosso bunker. Ao entrar, nova esterilização agora do volante, na marcha e em outras partes do painel. Ao ligar o carro, observei que o combustível estava na reserva. Lá foi mais estresse com a necessidade de abrir o vidro no posto, passagem do cartão na maquineta e digitação da senha. Novamente uma chuva de álcool em gel.
Não sei bem o motivo de, no caminho, lembrar do seriado “Terra de gigantes” que foi exibido na televisão brasileira por volta de 1968. Na época, eu era um rapaz e me recordo do enredo. A série mostrava a tripulação de uma nave espacial chamada Spindrift que, durante uma viagem de Los Angeles até Londres, entra numa dobra espacial e cai num planeta onde todos os habitantes são gigantes.
Na “viagem” ao nosso destino também recordei do filme “Uma Odisseia no Espaço”, exibido em 2001, e que tratava de uma missão espacial rumo ao planeta Júpiter, em que os astronautas se vêem à mercê do computador HAL 9000, que controla a nave. HAL cometeu um erro, mas recusa-se a admiti-lo. Seu orgulho de máquina perfeita impede que aceite a evidência da falha. Por isso, para encobrir a própria e insuspeitada imperfeição, começa a eliminar os membros da equipe.
Digo que passamos mesmo por uma Odisseia no Espaço e que o nosso cuidado de não contrair o coronavírus justificou a lembrança da série “Terra de gigantes”, só que o medo agora é de seres microscópicos e não de gigantes, como no seriado. Os ditos gigantes, na conjuntura atual, somos nós.
Para terminar, digo que o nosso intento não foi alcançado, pois depois de esperarmos mais de duas horas na reta, recebemos a triste notícia de que a vacina tinha acabado. Só nos restou voltar, com o rabo entre as pernas, e planejar uma nova odisseia na terra dos minúsculos vírus amanhã.
Arruda Bastos é médico, professor universitário e presidente da Sociedade Brasileira de Médico Escritores – SOBRAMES – CE.

POR: ANA MARGARIDA FURTADO ARRUDA ROSEMBERG - A HISTERIA CONTRA O ESCARRO NA GUERRA CONTRA A PESTE BRANCA


Ana Margarida Rosemberg e a Dama d'Auxerre - Louvre-Paris - setembro de 2019
A HISTERIA CONTRA O ESCARRO NA GUERRA CONTRA A PESTE BRANCA


A transmissibilidade da tuberculose (peste branca) foi controvérsia secular, pois a doutrina hipocrática da hereditariedade chegou a constituir um dogma até o século XIX. 
Em 1865, o francês Villemin provou que a tuberculose era transmissível inoculando material de animais doentes em outros sadios, tuberculizando-os. Porém, em 1882, coube ao alemão Robert Koch (1843-1910) o grande feito de identificar o agente causal da doença, o Mycobacterium tuberculose, que passou a ser chamado de bacilo de Koch.

Quando Koch apresentou o bacilo à comunidade científica, a tuberculose era responsável por 1/7 da mortalidade no mundo e um só tuberculoso era capaz de expelir, por dia, sete milhões de bacilos. 
O escarro, visto como o grande veículo do bacilo, passou a ser combatido com rigor. Até então, as pessoas expectoravam abundantemente atapetando o solo, as paredes, os móveis, os lenços e as roupas. Era preciso conscientizar a população a mudar esse hábito nefasto e, para isso, leis foram criadas para combater o péssimo costume de escarrar no chão e nas paredes.

Irromperam campanhas em diversos países do mundo orientando o uso das escarradeiras públicas e de bolso, contendo líquidos antissépticos. Por volta de 1890, surgiram na França as escarradeiras públicas e portáteis. As primeiras eram pesadas, de difícil manejo, com abertura de diâmetro reduzido, que dificultava o ato de escarrar sem molhar suas bordas e sem formar verdadeiras estalactites. Além disso, o ácido fênico, usado para neutralizar o bacilo, era tóxico e exalava mal cheiro, provocando náuseas e acessos de tosse nos tísicos.

Inúmeros cartazes com dizeres sobre o risco de escarrar no chão foram editados em vários países do mundo. 
No Brasil, as Ligas de Combate à Tuberculose e a Inspetoria de Profilaxia de Tuberculose (IPT) do Departamento Nacional de Saúde (DNS) do Distrito Federal encamparam esta forma de luta.  

Criou-se uma verdadeira guerra contra o escarro, chegando-se a uma histeria coletiva desencadeada pelas campanhas das instituições médicas. Em todos os países, viam-se cartazes afixados em diversos locais. Folhetos foram distribuídos às populações alertando-as sobre a transmissão da tuberculose. O comércio tirou proveito. Anunciavam-se escarradeiras próprias para hospitais, escritórios, fábricas, restaurantes, teatros, transportes coletivos etc.

Em Paris, empresas faziam propaganda de escarradeiras de bolso e porta-lenços antissépticos descartáveis. Em Berlim, inventaram um preparado aderente para colar nas solas dos sapatos que matava os bacilos. Usavam-se impermeabilizadores de assoalhos com substancias bactericidas. Uma empresa internacional vendeu colchões e travesseiros com antissépticos que matavam os bacilos. Nos Estados Unidos, foi promulgada portaria proibindo escarrar nos assoalhos, plataformas das estações e viaturas públicas. Os contraventores eram multados com 25 dólares ou 10 dias de prisão. Em Viena, a multa ia de 2 a 200 coroas com prisão de 6 horas até 20 dias. Os hotéis da Europa ofereciam apartamentos sem tapetes e sem cortinas.

No Brasil, a Liga Paulista Contra a Tuberculose solicitou o apoio da imprensa diária e a maior parte dos jornais da capital Paulistana inseriu em suas páginas, por muito tempo, essas máximas de profilaxia contra a tuberculose criando no espírito popular uma consciência sanitária. Foi votada uma lei que proibia escarrar nos teatros, igrejas, hotéis, casas de pensão, circos, frontões, prados de corridas, cafés, confeitarias, mercados etc. Esses estabelecimentos foram obrigados a instalar escarradeiras higiênicas coletivas, contendo líquido antissépticos, elevadas de um metro sobre o solo ou suspensas nas paredes.

Na guerra ao escarro foi relevante o papel que as escarradeiras desempenharam. As antigas de madeira cheias de areia e serradura foram, irremediavelmente, condenadas pela higiene. Aquelas de metal, vidro ou ferro esmaltado, apesar de mais asseadas, não foram toleradas por muito tempo por apresentarem pequeno tamanho e não permitirem a colocação de uma camada suficiente de líquido antisséptico para impedir a dessecação dos escarros. Depois, por serem instáveis, podiam tombar com facilidade, contaminando o chão com seu conteúdo e, por serem colocadas ao nível do solo, dificultavam a projeção dos escarros em seus interiores, principalmente quando suas aberturas não eram suficientemente amplas. Outro problema era a dificuldade para limpá-las e esterilizá-las por causa de suas reentrâncias. Todos esses inconvenientes das “cuspideiras” comuns justificavam sua condenação pela ciência sanitária como uma peça anti-higiênica para ser usada, principalmente, nos lugares públicos.

As escarradeiras fixas, de fácil limpeza e desinfecção, adaptadas às paredes e sempre a certa altura do assoalho, eram as mais aconselhadas. Afinal, essas escarradeiras higiênicas estavam sendo utilizadas nos países civilizados. Existiam vários tipos e modelos de escarradeiras e as mesmas tornaram-se objetos requintados que ornamentavam as residências dos ricos.  Os pobres escarravam no chão, dentro de seus dormitórios escuros e sem ventilação, espalhando bacilos e contaminando facilmente seus familiares.

É interessante observar que com o mesmo slogan, “É PROIBIDO”, o destino de dois objetos, escarradeira e cinzeiro, nas lutas contra a tuberculose e contra o tabaco, foi completamente diferente. Na primeira, as escarradeiras entraram na moda e se disseminaram por todos os lugares. Na segunda, os cinzeiros foram, paulatinamente, saindo de moda e desaparecendo, pouco a pouco, das residências e demais locais públicos.

Enquanto a profilaxia da tuberculose era feita através do combate ao escarro, o alemão Carl Georg Friedrich Wilhelm Flügge (1847-1923) mostrou, no finalzinho do século XIX, que não só a poeira seca (fruto da dessecação do escarro) era responsável pela transmissão do bacilo, mas, principalmente, a poeira líquida que o tuberculoso, a cada instante, projetava ao falar, tossir, espirrar e cantar. Essas gotículas carregadas de bacilos passaram a ser chamadas de gotículas de Flügge e tornaram-se as principais responsáveis pela propagação da tuberculose.

Porém, a ideia do perigo do escarro persistiu por muito tempo e só, paulatinamente, deu lugar a ideia de que as gotículas de Flüggle eram bem mais poderosas na transmissão da tuberculose. A partir de então, o tísico passou a ser visto como perigoso, não só pela sua expectoração, mas, principalmente, por sua presença.

 Hoje, sabe-se que a tuberculose se transmite através das gotículas de Flügge e só excepcionalmente através do escarro. Na época da guerra ao escarro, teria sido mais viável uma guerra às gotículas. Porém, elas não eram visíveis como o escarro e foi nele que Koch descobriu o bacilo.

Ana Margarida Furtado Arruda Rosemberg

Fortaleza, 29 de março e 2020

Fonte: ROSEMBERG, Ana Margarida Furtado Arruda. Guerra à Peste Branca – Clemente Ferreira e a Liga Paulista contra a Tuberculose - 1899-1947. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 2008.
 
Escarradeiras de domicílio
 
Escarradeira de metal

sábado, 28 de março de 2020

POR TIAGO STUDART SINDEAUX: PARADA

PARADA 

Dor lancina triste cena, 
pernas bambas que se somem/
Pensamento fragmenta/
Cerra às mãos uma tormenta/
Sentimentos não respondem/

Nos pulmões o ar que entra,
Ventos curtos se escondem/
Ânsia vem, é violenta/
Um sufoco que arrebenta/ 
Ouve os dentes que se rangem/

Corpo assim que mal respira,
lento sangue que não flui/
Viver triste é uma sina, 
pelo mal que evolui/
Lá se vai dentro do peito, 
tá falido é sem jeito, 
bomba sem mais expressão/

Bate forte, desde sempre/
Agora fraco se ressente/
Combalido Coração/

Tiago Studart Sindeaux 
28/03/2020 

POR ARRUDA BASTOS: Diário de uma quarentena (8º dia)

Dr. Arruda Bastos - Presidente da Sobrames-CE

Por Arruda Bastos
Por favor, fiquem em casa
Prezados leitores, como minhas crônicas, depois que tudo isso passar, vão se transformar no terceiro volume de uma coleção de livros que escrevo denominada “Corações”, tenho por obrigação pincelar algumas delas com fatos da nossa realidade de forma nua e crua.
Por isso, no dia de hoje, 27 de março de 2020, vou falar da falsa polêmica do isolamento social e de uma espécie já testada e que não funcionou em local nenhum do mundo, denominada de “isolamento vertical”, na qual só idosos e outras pessoas do grupo de risco ficam em quarentena.
Digo que a parte do meu corpo mais dolorida nessa manhã são as pontas dos dedos. Isso se deve à quantidade de posts que escrevi nas minhas redes sociais com a hashtags #FiqueEmCasa. O motivo de tamanha compulsão foi as últimas notícias da Covid-19 no Brasil e no mundo e a estapafúrdia proposta de voltar atrás nas medidas restritivas de circulação, sugerida pelo presidente.
No grupo do whatsapp da família e do condomínio, postei que: Em todos os lugares do mundo em que foi flexibilizada a quarentena, a situação piorou sensivelmente e o retorno foi obrigatório de forma ainda mais restritiva, depois de milhares de mortes e de um grande aumento dos contaminados. Exemplos típicos da Itália, Espanha, Inglaterra e, agora, nos Estados Unidos.
Em outro post, fui mais enfático informando que não existe possibilidade de tal isolamento vertical funcionar, pois crianças, jovens, adultos jovens e adultos mais velhos transmitem a doença, mesmo assintomáticos, aos grupos de idosos e de risco e a contaminação acontece nas escolas, no trabalho e nas ruas. A defesa da flexibilização não tem respaldo científico em nenhum trabalho reconhecido de especialistas no mundo, muito pelo contrário.
Para outros grupos, postei que como ex-secretário da saúde do Estado do Ceará e conhecedor da nossa realidade de número de hospitais, leitos, UTIs e respiradores, tanto na rede pública como na privada, se o isolamento social, como determinado pelo governo do Estado, não for respeitado, vamos vivenciar a calamidade em maior grau que em outros países.
Aos amigos muito abastados, alertei que não vai adiantar ter plano de saúde e condições financeiras para pagar o tratamento necessário, pois simplesmente não teremos hospitais, leitos, UTIs, respiradores e até, pasmem, profissionais de saúde para atender, mesmo com a tentativa de ampliação da rede de saúde.
Meu apelo é para valorizarmos a ciência e os exemplos já demonstrados no mundo de que, se não achatarmos a curva de crescimento da doença, que é nossa última esperança e tábua de salvação, estamos todos fritos. Digo que estou muito angustiado com a magnitude do problema e a incompreensão de alguns.
Os efeitos econômicos e sociais são importantes, sem dúvida, mas a vida humana está em primeiro lugar. Os danos financeiros podem (e devem) ser amenizados pelo setor econômico, como em curso em outros países do mundo. Não tenho dúvida de que estou no lado certo da história, pois tenho lido muito a respeito e conheço de perto a estrutura de saúde pública e privada do país.
Desejo, do fundo do meu coração, que meus leitores e a grande maioria da população cearense possa continuar a enfrentar com coragem e fé em Deus os efeitos da quarentena e da pandemia e que o número de mortes seja o menor possível.
Quero ler seus comentários depois da Covid-19. Bata na madeira três vezes e fique em casa.
Não é política, é ciência.
Vida só temos uma.
Arruda Bastos é médico, professor universitário e presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - SOBRAMES – CE.

POR SEBASTIÃO DIÓGENES: FIQUE EM CASA!

Dr. Sebastião Diógenes - Membro da Sobrames-CE

Fique  em casa!
         A natureza humana sempre teve para os seus ferimentos os remédios apropriados.” (Santo Agostinho)

         Estamos sob a tirania do coronavírus.  Trata-se de um insaciável aniquilador de vidas humanas, e, ao mesmo tempo, um detonador do sistema produtivo das nações. Uma das ordens das autoridades sanitárias para combater o voraz inimigo é ficar em casa. Não sair de casa! Há gentes que têm dificuldades de obedecer às recomendações básicas de prevenção da pandemia, por razões diversas, que não cabem, neste espaço, o mérito da argumentação.
       Participei de um vídeo realizado pela Sociedade Cearense de Otorrinolaringologia, estimulando as pessoas que ficassem em casa. “Fique em casa!” é o slogan da campanha.  O vídeo correu o mundo. E a filha do compadre Raimundo Carlos assistiu a ele, e me ligou apavorada.
O pai tem 80 anos, e um passado de câncer do aparelho digestivo. Além da cirurgia, ele submeteu-se a radio e quimioterapia. Embora seja considerado curado da neoplasia, a filha julga ser o pai uma pessoa, ainda mais, vulnerável à patogenicidade do Covid-19.
         - Padrinho, papai não está fazendo a quarentena. Sai para a rua, vai ao sítio, como se nada de grave estivesse acontecendo. Ele está causando o maior problema aqui em casa. Mostrei o seu vídeo a ele. O senhor poderia ligar pra ele e dar uns conselhos?
         Liguei para o compadre. Com bons modos, e de forma didática, expliquei sobre a epidemia. Argumentei que a situação é muito grave, e que o isolamento em casa é a melhor forma de prevenir a doença, que é fatal em milhares de casos entre os idosos.  
         - Pois não, meu compadre Tião! Fique tranquilo! Vou seguir o seu conselho – prometeu, e se queixou do pessoal dele, afirmando que era muito exagerado nas coisas.
         Dois dias depois, Sirlene, a afilhada, telefonou alegando que o pai continuava desobedecendo às regras de prevenção contra o Covid-19. Voltei a entrar em contato com ele pelo celular.
         - Bom dia, compadre Raimundo! Onde você está? – perguntei como quem faz uma ronda para verificar o cumprimento de uma regra estabelecida.
         - Estou em casa! – respondeu sem convicção, logo depois de eu ter escutado o mugido da vaca.
         - E você está com a vaca no apartamento, compadre Raimundo? – repliquei com ironia.
         Pediu desculpas pela mentira. Realmente encontrava-se no sítio, não havia como negar. Recorrendo mais uma vez aos bons modos de falar, trouxe-lhe à lembrança as quatro cirurgias que se submetera no passado. E lhe avivei a memória, alegando a minha presença nos socorros urgentes.  Adverti-o, que em caso de contrair o novo coronavírus, não lhe poderei prestar nenhuma assistência, como o fizera nas enfermidades pregressas.
         - Eu compreendo o meu compadre! Agora estou vendo que a coisa é muito séria – respondeu dizendo que desta vez eu podia ficar tranquilo.
         Dois dias depois, recebi novo telefonema da afilhada. O comportamento do pai em nada mudara. Sem demora, peguei o telefone e queimei a última tentativa.
         - Fala Dr. Sebastião Diógenes!... – já me atendeu diferente, com formalidades.
         Senti que o velho Raimundo Carlos não estava para conversa. Procurei ser sucinto. Conheço a figura!
         - Estou telefonando para comunicar que, caso a indesejada o visitasse, não lhe poderei comparecer ao enterro. E dei por encerrada a tarefa de tentar salvar a vida de um cabeça-dura.
         Três dias depois, Sirlene me ligou feliz da vida. Perguntou o que eu fizera para obrar o milagre. O pai havia três dias que não saia de casa.
         - Acho que desta vez empreguei argumentos mais persuasivos – respondi triunfante, com a tática empregada para causar o milagre.
Sebastião Diógenes.
28-03-2020
               

sexta-feira, 27 de março de 2020

POR MANOEL FONSECA - Quarentena: itinerário de viagem em casa.

Dr. Manoel Fonseca - Diretor de Cultura da Sobrames-CE

              Quarentena: itinerário de viagem em casa.
Acordo às 8hs, num dia qualquer da semana, ao som do canto de um bem-te-vi que insiste, do alto de um palmito, com seus cachos de frutos vermelhos, em augurar-me "te vi bem, bem te vi".
Vou ao banheiro, miro no espelho meus cabelos cor de algodão doce, faço minha higiene pessoal e me preparo para enfrentar a "frenética" jornada diária no oitavo dia de quarentena.
Caminho até o jardim para aguar nossos cinquenta "bonsai", alguns vivendo conosco há trinta anos. Bonsai significa, segundo os chineses, "árvore em bandeja", pois são árvores em miniatura, escolhidas em montanhas por seu poder de cura e plantadas em pequenos jarros bem rasos. A arte do bonsai guarda três princípios filosóficos: o shizen, que significa naturalidade e não afetação, o wabi, que significa simplicidade e desapego e sabi, que significa sabedoria e introspecção meditativa.
Após aguar as outras plantas do jardim, arrodeio o quintal para dar água e comida à Nina, nossa cadela labrador e fazer massagem em suas duas orelhas. Ela adora e quase cochila.
Depois deste primeiro tour, volto ao quarto de dormir e acordo Iracema que, com um sorriso em seus lábios de mel e olhos cor de girassol, deseja-me bom dia.
Percorremos novo tour rumo à cozinha, onde degustamos uma frugal primeira refeição. Café com leite para nós dois, saboreio uma tapioca feita por mim e Iracema, que está com a glicemia nos trinques, come tareco e bolo de banana. Ao falar em tapioca, lembramos o uso da mandioca por nossos indígenas, descrito nos versos de nosso livro "Meu povo ancestral":

"Da raiz de mani, colhida na roça,
Se faz farinha, produto essencial,
Na caça e pesca a mistura reforça,
Para os curumins, chibé e mingau.

Nos folguedos e rituais sagrados,
Na alegria, dor e celebração,
O cauim, de mani, o fermentado,
Libera sentimentos e emoção."

Após o café da manhã,  voltamos ao quarto para pôr em dia o Whatsapp, ao leve balanço de nossas redes sol-a-sol coloridas. Primeiro vejo grupos familiares para saber se filhos e netos e as sete irmãs e famílias estão bem. Depois dou uma olhada no grupo Médicos pela Democracia e do grupo relacionado com meu pensamento político. Muita informação sobre o coronavirus e sobre a leniência e incompetência do presidente Bolsonaro no enfrentamento da epidemia de COVID-19. Participo também de um grupo Associações Brasil Mundo de profissionais de saúde, dirigido a brasileiros que moram em países da Europa, visando prestar informações solidárias. Damos, então, uma parada nas mídias sociais e vamos fazer trabalhos manuais. Iracema, que é bióloga, está retomando trabalhos artesanais com folhas desidratadas, as exsicatas, para criar pássaros, paisagens, mandalas e recobrí-las com resina liquida, fazendo bandejas, porta-copos, quadros de parede e também marca-livros. E eu vou cuidar dos "bonsai", pois está em tempo de fazer a poda da folhagem e das raízes e renovar a mistura de areia grossa com adubo de minhoca, para alimentá-las.
Durante a tarde/noite conversamos com amigos pela internet, com os filhos e netos que moram longe, proseamos com nossa filha, nossa vizinha e apoio, lemos, escrevemos e nos divertimos um pouco com jogos inteligentes.
Ontem à tarde aconteceu um fato inusitado: a visita de um soim em busca de comida. Encarapitado em frondoso pé de Noni, com olhar pidão, esperava quieto. Minha filha deu-lhe uma banana, que comeu com satisfação. Um presente da mãe natureza, como a dizer que a vida continua, apesar deste tempo de tormenta. 

Manoel Fonseca
Movimento Poetas del Mundo
Associação Brasileira de Médicas e de Médicos pela Democracia - Ceará