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segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

CARDIO-ONCOLOGIA - Por: Ronald Teles

            Dr. Ronald Teles - Cardiologista

                Dedico esta crônica ao meu amigo, Dr. Aurilo Rocha

Entrei no internato da faculdade de medicina da UFC, há 33 anos. Era um rito de passagem, pois iríamos vestir branco, que era o traje habitual de todos os médicos na época, simbolizando pureza e conhecimento aos que o usavam, assim como também passaríamos a usar o estetoscópio, instrumento milenar de ausculta e fundamental na semiologia do exame físico dos pacientes e detecção dos vários sons emanados dos órgãos humanos, como coração, pulmão, intestinos e seus significados clínicos.

Passaríamos também por cada serviço médico do internato como cardiologia, clínica médica, doenças infecciosas e parasitárias, endocrinologia, hematologia; estágio em interiores estaduais que eram os Crutac. Nestes serviços entraríamos em contato direto com os pacientes, que prescreveríamos diariamente, evoluiríamos diariamente, acompanharíamos os exames clínicos, assim como os levaríamos até em outros nosocômios para realizar avaliação propedêutica mais especializada, alheia ao serviço de origem.

Éramos supervisionados pelos chefes de serviço e professores, assim como os médicos residentes do primeiro ano, R1, segundo ano, R2, terceiro ano, R3 de clínica médica, que eram os que se especializariam na rainha das especialidades e mãe da medicina baseada em evidências, a medicina interna. Confesso que me apaixonei pela cardiologia no internato, a clínica cardiológica, o exame físico, a propedêutica, as sessões conjuntas da cardiologia/ cirurgia cardíaca e hemodinâmica, tornavam o ambiente mágico e estimulante.

Naquela época o serviço que mais despertava receio e ansiedade, ela alta complexidade dos pacientes, pelo intenso trabalho diário, pelo drama humano que suscitava, ela grande cobrança tutelada pelos professores e residentes do serviço era a Hematologia. Quando avistávamos no final do longo corredor do velho hospital Walter Cantídio, um professor para a realização da visita diária, nosso coração estremecia, o sistema nervoso simpático predominava através de palpitações, sudorese das mãos e uma quase taquipneia. Notadamente na visita do Dr. Murilo Martins, para nós internos, um deus, para a comunidade médica um" Schollar",livre docente, dono de sua cátedra, com especialização nos Estados Unidos da América, e na época dono do estado da arte na hematologia, conhecendo-a em profundidade e amplidão.

Ele sabia que éramos neófitos na arte médica, mas nos cobrava o cuidado com os pacientes de sua enfermaria de maneira exemplar, nos perguntava sobre os fármacos usados nas quimioterapias, da história e evolução dos pacientes, dos resultados de seus exames recentes e das últimas alterações, assim como traçava as novas condutas diariamente. Lembro-me perfeitamente dele naquela época, com seu longo jaleco branco(que nem se usava ainda nos anos 90) um estetoscópio de tubo amarelo, cabeleira lisa e grisalha indefectível, óculos escuros e cenho sério, personalidade marcante, homem de poucos sorrisos, elegante e competentíssimo e de vasto saber médico.

O serviço também abrigava uma jovem professora Dra. chegada da França, a Dra. Clara Bastos, extremamente gentil, qualificadíssima e competente e nosso querido Dr. Sílvio Furtado, que também ostentava grande conhecimento hematológico foi um dos diretores do HUWC, além de nosso professor querido. Prescrevíamos e evoluíamos nossos doentes avistando nos televisores preto e branco do posto de enfermagem, a guerra do Golfo Pérsico, a primeira beligerância humana transmitida ao vivo, com os mísseis Tomahawk americanos e sua grande coalizão varrendo as linhas inimigas de Sadan Hussein do Kwait. Em 1998, em Washington DC, veria ao vivo esse míssil assim como todas as armas da guerra fria no Museu Aeroespacial.

Na mesma época do internato em hematologia, minha avó amada materna, começou a apresentar estranhas manchas escuras na pele, fez um hemograma e este revelou uma contagem leucocitária exorbitante de 200.000 leucócitos, assim como células anormais denominadas blastos, o que configurava uma possível "reação" leucemóide e uma neoplasia sanguínea de nome leucemia. Foi orientada então a realizar uma punção medular chamada mielograma para distinguir o tipo de patologia leucêmica envolvida e sua respectiva classificação e estratégia de tratamento. O resultado foi uma leucemia mieloide aguda mielomonocítica -M4.

Nessa época minha avó contava 72 anos e não possuía nenhuma comorbidade. Foi rapidamente transferida ao HUWC e ficou sob os cuidados da Dra. Clara Bastos, que a conduziu da melhor maneira possível, com competência indescritível a acolheu com sua humanidade característica, traçando sua estratégia quimioterapia de tratamento. Nós internos começávamos a nos familiarizar com termos como: indução da remissão, consolidação da remissão e finalmente remissão.

O último significava a vitória, nem que temporária sobre o desastre celular incoordenado, a multiplicação patológica e ineficiente das células neoplásicas e do intenso metabolismo energético consumptivo, além das infecções oportunistas provocadas pela própria doença ou até pelo regime quimioterápico. O tratamento tentava varrer de suas medulas e sangue as células leucêmicas, aplasiando a medula óssea que daria lugar às células saudáveis. Essa fase era de grande vulnerabilidade e o paciente era monitorado continuamente, principalmente quanto à febre, sangramentos ou instabilidade cardiocirculatória.

O prognóstico de minha avó que tanto amei e que era uma criatura santa que passou pela terra, por seu coração amoroso e gentileza e carinho com todos, era reservado por sua idade e a classificação de sua leucemia (LMA M4) que era extremamente agressiva e de difícil condução. Ela feneceu 50 dias após o diagnóstico, hoje sei ,de disfunção múltipla de órgãos e sistemas. Sofri a perda duplamente pois a amava profundamente e estava passando pelo serviço de hematologia, o que me provocou imenso peso emocional.

Essa mortalidade que a vitimou mudava a conformação de nossa enfermaria todos os dias e semanas, com óbitos ceifando vidas de todas as idades e sexo, de forma abrupta e por todas as consequências tanto da doença, quanto do tratamento em si. Esse drama humano em sua finitude e sofrimento, conhecendo os pacientes em seus anseios e esperanças, nunca esquecerei. São lições que nos remetem à nossa limitação e pequenez, e nos fazem crer na misericórdia divina espraiada em nossas existências. A Cardio-oncologia, por definição é a especialidade que diagnostica, monitoriza o tratamento oncológico durante e após o mesmo, assim como suas complicações, além de oferecer estratégias preventivas para evitar tais complicações.

A Oncologia avançou de maneira vertical e abrangente nestes últimos anos, há um arsenal terapêutico bem estabelecido para as neoplasias sanguíneas e sólidas, mas há uma preocupação pertinente com as complicações cardiovasculares inerentes a cada tipo de tratamento escolhido. Hoje a doença neoplásica está em segundo lugar no mundo como causa de mortalidade. Em nosso meio os cânceres em primeiro lugar são os prostáticos, pulmonar e intestinal nos homens e o de mama no sexo feminino.

As Antraclinas (doxirrubicina, daunorrubicina, epirrubicina) podem provocar dano cardíaco irreversível, classificado com tipo1,os compostos imunobiológicos como o Trastuzimab, podem provocar dano temporal e reversível, chamado tipo 2. O mecanismo fisiopatológico do primeiro grupo, passa pelo estresse oxidativo, peroxidação lisossomica, sarcopenia cardíaca, necrose e apoptose celulares e redução de células estaminais cardíacas, no segundo grupo, dos imunobiológicos, citotoxicidade e diminuição da expressão do receptor HER cardíaco.

A dose cumulativa das antraciclinas é o principal fator preditor da cardiotoxicidade e seu diagnóstico se faz pela detecção de disfunção ventricular esquerda verificada como diminuição da fração de ejeção do VE e sintomas e sinais clínicos associados com galope ventricular esquerdo e o cotejo sintomático da síndrome. Podem também sobrevir hipertensão arterial sistêmica, coronariopatia, arritmias cardíacas, doenças do pericárdio e fenômenos tromboembólicos, com as mais variadas classes de quimioterápicos e sua diversidade de aplicações sejam em neoplasias sólidas e hematológicas.

 Os principais fatores de risco para a cardiotoxicidade são: Idade (pacientes jovens) sexo feminino, infusão parenteral, dose cumulativa, irradiação mediastinica, doenças prévias como hipertensão e coronariopatia, e distúrbios eletrolíticos do cálcio e magnésio. A avaliação propedêutica é realizada através de ECG, ecodopllercardiograma, ressonância magnética cardíaca e angioressonancia, tomografia e biópsia endomiocárdica.

Hoje dispõe- se de estratégias tanto oncológicas como cardiológicas para minimizar o dano cardíaco. Da parte oncológica o uso dos análogos das drogas naturais das antraciclinas como a EPIrrubicina ou a IDArrubicina que podem ser usadas em titulações mais altas e por maior período sem os colaterais temidos das originais, A " embalagem" lisossomica das antraciclinas que diminuem sua toxicidade, permitem maior permanência no organismo e sua ação direta nos vasos de nutrição neoplásica, assim como as pró-drogas das antraciclinas associadas às mais variadas substancias como peptideos, polímeros ou anticorpos dirigidos ao alvo neoplásico.

O uso dos imunobiológicos por seu potencial de dano menor e transitório, o os imunobiológicos associados à toxinas fúngicas, regimes mais curtos e exclusivos e tantos outros.Os ensaios in vitro com modelos de tratamento também são preciosos e fazem os tratamentos mais seguros e efetivos.

Da parte cardiológica a identificação do paciente susceptível à cardiotoxicidade deve ser cuidadosa e minuciosa, a prevenção, diagnóstico e tratamento de qualquer afecção que possa aumentar o risco de nossos pacientes deve ser implementada, como meta pressórica alvo, tratamento e controle das arritmias cardíacas, tratamento da insuficiência coronariana, correção de distúrbios eletrolíticos, resgate da função ventricular esquerda e acompanhamento tanto de manifestações agudas quanto tardias do tratamento quimioterápico, uma vez que podem se dar em fases remotas pós tratamento.

Existem estratégias antioxidantes preventivas como os hipolipemiantes,os compostos quelantes do ferro,antoxidantes,mas só uma droga oficialmente aprovada com essa finalidade que é o daxrarozane,que tem uso controverso pela provável interferência na eficiência das antraciclinas. Assim como as doenças cardiovasculares, as oncológicas também têm bastante relação com nossos hábitos e estilo de vida e alimentação. O sedentarismo é responsável por muitas patologias, dentre elas a obesidade que é a mãe da inflamação e seus desdobramentos, dentre eles os mais variados cânceres.

O tabagismo responde por 95% dos cânceres de pulmão, o álcool responde por canceres em todo o aparelho digestivo, a dieta desequilibrada rica em carne ,vermelha, defumados, embutidos, sem fibras facilitam os cânceres de cólon, a exposição ao sol inapropriada leva ao câncer de pele, o consumo de alimentos repletos de pesticidas e defensivos agrícolas ( contra esses é difícil lutarmos) pode nos levar à cânceres hematológicos, a fumaça e Co2 dos grandes centros ao câncer de pulmão, Dietas inadequadas perpetuam a bactéria Helicobacter Pylori em nossos estômagos que nos levará ao câncer, se não tratada efetivamente, o uso indiscriminado dos antibióticos vai desorganizar nossa microflora intestinal e pode ocasionar câncer de intestino.

Infelizmente a lista é imensa assim como seu dano temporário ou permanente que levará o indivíduo a um sofrimento curto ou lento e demorado, com tratamento efetivo pela moderna onco-hematologia e sua vida restabelecida ou infelizmente um mau desfecho e seu decesso irreversível. Repensemos nossas vidas, reorganizemo-la no sentido dos bons hábitos, da dieta saudável, do exercício e entreguemo-la a Deus todos os dias.

32 comentários:

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    1. Muito obrigado querida Dra Ana Margarida Rosenberg,por sua usual gentileza e leitura estimulante aos novos conteúdos!

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    2. Dr Ronald Teles
      é diferenciado!
      Parabéns amigo Ronald Teles! Leitura de importante abordagem e integrativa!
      👏👏👏

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    3. Muito obrigado! Um tema complexo,de grande importância médica e leiga também,pois passa por prevenção e mudanças comportamentais.

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  2. 👏👏👏👏👏👏👏👏

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  3. Parabéns, 👏👏👏👏

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  4. Parabénsssss 🙏🙏🙏

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    1. Muito obrigado! Fico feliz com sua apreciação!

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  5. Parabéns pelo o belíssimo texto

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    1. Muito obrigado pelo carinho e estímulo!

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  6. Lindo o texto parabéns

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  7. Muito obrigada por repassar tanto conhecimento e dividir com nosco este momento tão difícil que foi a perda de uma pessoa tão especial na sua vida forte abraço.

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    1. É uma satisfação, e uma verdadeira catarse,dividir sentimentos e dificuldades por que passamos em nossas vidas ,com pessoas com a sua sensibilidade! Obrigado!

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  8. Dr. Ronald Teles, texto extremamente importante ao conhecimento humano. Parabéns!

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    1. Muito obrigado! Eu o ofereci à um grande especialista na área de oncologia e seu grupo,graças à Deus com uma boa avaliação!Fiquei muito feliz de alcançar a aprovação de grandes especialistas e também aos leitores de outras áreas não correlatas à médica.A literatura deve sempre ter esse condão.

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  9. Obrigada por compartilhar conhecimentos tão importantes para nossas vidas e fazer-nos crer que estamos bem assistidas por um profissional dessa categoria.

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    1. Muito obrigado pela deferência e carinho!

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  10. 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽parabéns Dr. Ronald. Mazé MEDINA.

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    1. Muito obrigado querida dna Maria José Medina! Uma honra sua leitura!

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  11. 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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  12. Primeiramente meu pesar a pessoa de sua avó, a perca de um ente querido dói muito e para sempre, mesmo nós que encaram todos os dias a contra partida de mandar a morte embora ou na dolorosa missão de dar a notícia aqueles que ficam. Texto super esclarecedor e advertente👏🏻👏🏻

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  13. Muito obrigado pela leitura e opinião querida Tamyres Carneiro!

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  14. Sua perspicácia é inebriante e esclarecedora, mesmo em um momento de luto nos mostra a importância da vida. Parabéns 👏👏👏👏- Professora Carmem.

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    1. Obrigado por sua visão estimulante e lúcida,querida pfra Carnen!

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  15. Relembrar o convívio com nossos mestres, que tiveram uma conduta ética e um conhecimento científico expressivo, é uma forma de reafirmar o humanismo de nossa profissão. Parabéns pelo belo texto!

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  16. Muito obrigado querido confrade Dr Manoel Fonseca,grande poeta e escritor! Por suas mãos esculápias, certamente passaram muitos ensinamentos a tantos jovens e colegas que provaram de sua preciosa companhia!

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