Quando o facínora chorou
No vale do rio das Onças nasceu e se criou Iralfonso, que viria a ser um
famigerado facínora. Nesse lugar perigoso, onde os homens praticavam
atrocidades com reputação de valentia, não escapou a Iralfonso a medieval
cultura dos seus ancestrais. Cometeu o primeiro delito de sangue aos dezesseis
anos de idade. A vítima foi o bem-querido gato da casa da namorada. Com o
mesquinho propósito de mostrar as armas que ganhara do pai, descarregou o
revólver no pobre animal, e, em seguida, sangrou-o com o punhal de cabo
multicolorido. Uma selvageria sem medidas, tudo o fez com a crueldade dos
facínoras. A atitude inesperada e violenta do jovem causou pânico naquela
pacata família. Sensatos e cautelosos, os pais da mocinha solicitaram ao
delinquente que se lhe retirasse do lar. Tiveram a fortuna de ser atendidos.
Foi a última vez que o viram, porque a família, apavorada, logo mudou-se para a
Capital.
O assassínio
do doméstico animal da Felidae
família foi, para as gentes do vale, o augúrio do nascimento de um novo
pistoleiro na região. Não demorou a confirmação do mau presságio. O primeiro
crime contra a vida de uma pessoa aconteceu em uma vaquejada, que valia
prêmios. O boi, que Iralfonso puxara pelo rabo, caiu com as patas fora da faixa
regulamentar, o juiz não lhe atribuiu o ponto, e o locutor gritou para o
público: “Não valeu o boi”. Transtornado com a desclassificação na competição,
o assassino travestido de vaqueiro dirigiu-se ao palanque do juiz, e matou-o
com seis tiros de revólver. Seguindo uma continuada prática na região,
Iralfonso refugiou-se por ali mesmo, que para serviço de morte não faltaria o amparo
de homiziadouros e bacharéis do ramo.
Iralfonso
contava um ativo de mais de duas dezenas de mortes, das quais seis em uma
chacina, quando foi preso pela terceira vez. Os mandantes não se preocupavam
com a sua detenção, ele tinha a fama de não abrir a boca, não nomeava a autoria
intelectual do homicídio, nem sob tortura. O sigilo era-lhe a marca registrada
do impiedoso ofício. Tornou-se o executante de confiança, o preferido.
O celerado
foi preso várias vezes, logo ganhava a liberdade pelas brechas da lei, que a
justiça sempre encontrava. Todavia, foi julgado e condenado à pena máxima por
um dos crimes de maior repercussão. Tinha, porém, privilégios no cárcere: cela
especial com geladeira, micro-ondas, televisão, cama e banheiro. Recebia com
regularidade visita íntima da mulher, casados havia cinco anos, por quem
mantinha uma atormentada paixão. Jovem e livre de inibições, a sedutora esposa
despertava a concupiscência por onde passava. Preocupações e ciúmes passaram a
atormentar o espírito de Iralfonso. Ainda não tinham filhos, lamentava consigo
mesmo, a maternidade poderia ser um freio às glândulas da mulher.
Cumpria o
quinto ano de reclusão, um sexto da pena, quando Iralfonso recebeu a
notificação da liberdade condicional por bom comportamento. Ele não acreditava
nessa história de bom comportamento na prisão. Sabia que, por trás dessa
liberdade, havia gente de poder necessitando dos seus funestos obséquios, e
aguardava com ansiedade a visita do agenciador.
Apesar de
sempre ter desejado a liberdade, até tentativas de fuga havia planejado, Iralfonso não esboçava a ínfima alegria com a
notícia que logo deixaria a prisão. Estava muito amargurado com as ausências da
mulher. As visitas rareavam, havia um ano, e contava três meses que não
comparecia à casa de detenção, nem dava notícias. O ciúme era o único tormento
que lhe afligia a alma, sentia-o de forma intolerável e incontrolável.
Encontrava-se absorto nessas reflexões, e tomado de uma tristeza profunda,
quando o agente carcerário lhe anunciou, com intimidade:
- Visita pra
você, seu Ira!
Não indagou
de quem se tratava, esperava que fosse a mulher. Claro, só poderia ser ela,
embora estivesse sumida por todos esses meses. Talvez existisse uma
justificativa convincente para tanto desprezo, uma doença grave, por exemplo,
ou quem sabe, razões outras alheias à sua vontade, imaginava Iralfonso, que
somente agora a pobre mulher pôde se apresentar para as honras do matrimônio.
Ora, ora, só poderia ser isso mesmo, mulher de cabra-macho não faz besteira,
conjeturava, e a ideia de fidelidade conjugal se lhe esboçava na mente, quando
lhe despertou uma voz grave:
- Com licença
seu Iralfonso – e foi entrando na cela especial o agente de negócios do matador
por encomenda. – Tenho um servicinho pra você fazer. É gente de poder e muito
dinheiro. O futuro finado também é gente graúda. Por isso você vai deixar a
cadeia, porque o serviço exige qualidade e muito segredo.
- Pra quando
é o serviço? – perguntou Iralfonso, com visível apatia.
- É pra já,
é tarefa de certa urgência, deve ser executada logo que você saia daqui.
Iralfonso
ficou calado, pensativo, com a fisionomia de quem estava com profundo
sofrimento da alma, parecia um ser arrependido dos bárbaros crimes. O
agenciador logo percebeu o estado de desânimo e tristeza do matador, e
inquietou-se:
- Qual é a
sua, cara, tá roendo a corda?
- Estou com
coisas na cabeça – respondeu-lhe o matador. – Desconfio que a minha mulher anda
me traindo. Você sabe de alguma coisa?
O agente da
associação criminosa procurou desconversar, que não sabia de nada, não tinha o
costume de dar ouvidos às fofocas.
- A verdade
ou não faço o serviço! – sentenciou Iralfonso.
- É verdade,
sim! – respondeu secamente o agente. - Inclusive ela está grávida, vive
amancebada com o seu primo, o Wilgerson. O pior da história é que a desmiolada
não sabe sequer quem é o autor da barriga.
Iralfonso
ficou paralisado, pensativo, e com o olhar perdido no chão que lhe acolhia as
pontas dos cigarros, fumados com desespero.
Após um longo pensar, levantou a cabeça, fungou o nariz encharcado, e
surpreendeu o agenciador com a inesperada decisão.
- Acho que
vou largar essa mulher!...
Iralfonso
saiu da prisão, cumpriu o último serviço de encomenda e nunca mais se teve
notícias dele. Alguns diziam que foi vítima de queima de arquivo, outros
afirmavam que a vergonha insuportável lhe modificou o caráter, virou pastor
evangélico em longínquas terras da Amazônia. Poucos meses depois, a mulher por
ele repudiada, porém, cuidada com regalo pelo primo Wilgerson, e livre de
necessidade, pariu um supermenino com três baguinhos. Causou grande alvoroço na
redondeza a novidade congênita que se mostrava entre as perninhas do
infante. As mulheres arrazoavam entre
si: algumas diziam que o menino era a cara do Iralfonso; outras, achavam-no uma
gracinha, “Tá na cara que é do primo dele, é o danado do Wilgerson na
pintura!”, exclamavam com convicção. Neste entretanto, dezessete mulheres que
tiveram vinte e sete filhos com o primo Wilgerson, juravam pelo conteúdo dos
sacos, às gargalhadas, a quem o menino puxara.
Sebastião Diógenes.
14-02-2015.
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