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sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

POR: WILLIAM MOFFITT HARRIS - MEU CARO LOURINHO

MEU CARO LOURINHO



MEU CARO LOURINHO



William Moffitt Harris
Pediatra Sanitarista de Campinas-SP
Membro Titular da Sobrames-CE

MEU CARO LOURINHO

Hoje estou tristonho. Meditava sobre o encontro de alguns dias atrás com um conhecido quando fomos festejar a entrada do Ano Novo na casa de uma das filhas. Fazia anos que não nos víamos. Relembramos o episódio em que ele salvou a vida daquele que se tornaria nosso fiel amigo e companheiro por quase duas décadas. Pegara uma escada e com um pano de chão resgatou o papagaio (Amazona aestiva, família Psittacidae) enquanto enxotava a molecada que apedrejava e atirava pedaços de pau para acertá-lo, por pura maldade pueril. Ele sabia que gostávamos muito de animais e logo nos trouxe o lourinho que aparentemente já havia anteriormente habitado a casa de alguma família, pois não se assustou com a gente e piava. Afeiçoou-se logo pela Ana Lúcia, nossa filha mais velha, que o deitava de costas em seu colo e lhe coçava a barriga coisa que eu não conseguia fazer. Era uma ave muito bonita e imponente quando nos fitava. Acima do bico tinha uma pequena mancha azulada fazendo divisa com outra amarelada entre os olhos. Nos “ombros” havia pequenas manchas avermelhadas.
Não possuíamos gaiola e a Maria Lúcia se recusava a prendê-lo num espaço reduzido. Já tínhamos no fundo do quintal um viveiro com duas maritacas (Pionis maximiliani) cujo proprietário anterior havia nos solicitado cuidar enquanto viajava para a Europa por três meses. Era um casalzinho simpático e bem comportado, embora barulhento, principalmente no fim da tarde quando um bando de sua espécie sobrevoava nossa casa e atacava o topo das árvores frutíferas por uma meia hora. O instinto selvagem o chamava para se unir ao bando. Dois anos depois vieram buscá-lo, mas as maritacas já haviam ido embora, pois com a algazarra dos cachorros, o viveiro tombou e o telhado abriu.
Estava já escurecendo e o soltamos na sala de jantar tomando o cuidado de fechar janelas e portas. Encharcamos um pedacinho de pão com café numa tigelinha que largamos em cima de um etajér. Não fez cerimônia e logo foi jantar.
Deixamos uma lâmpada acesa e fomos dormir.
Voava de ca pra lá e de lá pra cá parando nas arandelas para descansar, deixando ali e acolá seus dejetos esporádicos, acertando de quando em vez a mesa de jantar enquanto tomávamos nossas refeições. Coloquei uma tela na janela grande que dava para o corredor lateral da casa e fui a uma loja especializada em animais para comprar um poleiro apropriado, mas cujo pau tive logo de trocar por um pedaço de cabo de enxada feito de madeira bem mais dura e amarga. Afiava o bico, no suporte de madeira de pinho até desgastar as pontas com a inevitável queda que o assustara bastante algumas semanas depois.
Após alguns dias notamos que as lâmpadas das arandelas, que continham meia dúzia cada, estavam misteriosamente se apagando e num exame mais minucioso verificamos que o lourinho roía a fiação. Subi no forro e soltei os ferros que prendiam as arandelas baixando-as pelos fios elétricos até sentir que estavam no chão da sala. Levei horas, sentado no chão, para trocar todos os fios, desde os soquetes até todo o percurso pela corrente que descia do teto até as arandelas. Havia comprado dez metros de fio coberto com uma grossa capa de borracha preta que me deu trabalho para descascar. Tomamos o cuidado de esmagar alguns “dedos de moça”, a pimenta mais ardida que conhecíamos por estas paragens e esfregamos a papa por toda a fiação. O lourinho, trepado numa cadeira cujo assento estava protegido com um plástico, me olhava com curiosidade, piando o tempo todo. Uma vez tudo restabelecido e o chão varrido, coloquei o louro numa das arandelas.
Foi a conta! Neófitos em termos de papagaios, dando apenas frutas e sementes de girassol para as maritacas, não tínhamos a menor ideia do que estava para acontecer. O bicho atacou de vez a fiação, roendo a borracha impregnada com a pimenta, saboreando e grunhindo de satisfação. Surpreendido, apanhei uma pimenta ainda inteira e a ofereci ao louro. Agarrou-a com vigor e comeu quase tudo na hora!
Decidimos terminar logo as instalações planejadas lá fora e mesmo na chuva esticamos o arame cujo rolo havia também comprado com o poleiro. A base seria o poleiro dependurado num gancho na área de entrada principal da casa. Achávamos que esta deveria ser a forma dele poder se abrigar da chuva. Outro erro! Adorava ficar na chuva, esticando e molhando suas azas, assobiando e se chacoalhando. Mesmo assim eu, ou quem estivesse aqui em casa, o recolhia quando houvesse um temporal com raios. Devido à presença de uma subestação de força do outro lado de nossa rua, somos brindados ocasionalmente com um número enorme de raios e trovões.
Da base saiu um arame que ia de encontro a outro principal que atravessava longitudinalmente nosso gramado ao qual, em ângulo reto, vinha de encontro um terceiro que ficava paralelo com o terraço / garagem. Viveu felicíssimo conosco por mais de quinze anos, manifestando sua adoração por determinados tipos de música que eu colocava na vitrola ou na TV. Dançava e assobiava, acompanhando o ritmo. Impôs logo respeito à matilha que tínhamos aqui em casa que, então, não mais o amolava. Um dos filhotes levou uma bela bicada na ponta do focinho e saiu gritando de dor. Subia e descia das árvores e se escondia na folhagem mais densa das pitangueiras, uvaias, azevinho (Ilex aquifolium), limoeiros, do manacá-de-jardim (Brunfelsia calycina floribunda), quando percebia algum gavião-peneira nos sobrevoando em busca de presas fáceis. O que ele não sabia é que a mancha amarelada que lhe atravessava a testa entre os olhos poderia muito bem traí-lo ao mexer a cabeça para mirar o gavião.
De noitinha o chamava e apanhava-o com minha bengala. Gostava do meu jeito de colocá-lo no poleiro e levá-lo para dentro. Não achávamos prudente deixá-lo no escuro lá fora. Numa mesa reservado para ele, ficava um prato de latão de aproximadamente um metro de diâmetro com bordas elevadas de dois centímetros de altura. Havia despencado com uma forte ventania do tambor do nosso aquecedor solar. Retirávamos a plataforma do seu poleiro para lavar enquanto, avidamente, ia comendo sua ração e bebendo água. Insistia em mostrar para a gente como fazia ao mergulhar parte da ração na água. Muito raramente descia do seu poleiro para olhar de perto o que a Maria Lúcia estava bordando ou tricoteando. Uma vez catou a bola de lã e se enroscou tal qual fazem os gatos de estimação.
Num dos arames coloquei uma balancinha que ele demorou para aceitar, mais a tratando como uma intrusa. Com o tempo se equilibrava e batendo as asas rodopiava em torno do arame e cantarolava em sua própria linguagem, principalmente ao som de marchas que tocava para ele ou com o violino ou com a vitrola.
Adorava a hora do banho quando o tempo estava bom. A cada três ou quatro semanas podávamos a ponta de quatro ou cinco penas de uma das asas, eu o distraindo e o segurando e minha irmã Audrey ou a Maria Lúcia com todo o cuidado esticando a asa e efetuando a poda, num vap-vupt. O mais difícil era lhe cortar as unhas, principalmente o ”polegar” anômalo que lhe machucava e que não conseguia afiar no poleiro.
As maritacas pareciam gozar o louro durante a farra do banho que se realizava sob a torneira do jardim no quintal atrás de casa. Os cães, curiosos e atraídos pela barulheira a gente espantava com uma esguichada da torneira. Algumas vezes o lourinho  atravessava o portãozinho que dava para a horta onde mantínhamos o viveiro e ia brigar com as maritacas. Uma vez subimos rapidamente para ver o que estava acontecendo tamanha a gritaria das maritacas. Viram uma pedra andando debaixo do viveiro e, encostando numa de suas quatro pernas, balançando o conjunto. A Lolozinha, a nossa jaboti matriarca, estava catando restos alimentares caídos no gramado, além de nos livrar de caracóis, centopeias e tatuzinhos.
Bobeamos um pouco com a poda de sua asa que o impedia de voar a baixa altitude, mas a uma distância de apenas cinco ou seis metros. Em determinadas épocas do ano as penas se soltavam para dar lugar a outras mais novinhas e mais tênues. Ele mesmo as arrancava e eu preocupado, no começo, imaginando que fosse por alguma deficiência alimentar. Nosso veterinário, ao ser consultado por telefone, me assegurou da normalidade da ocorrência.
Um dia nosso vizinho, médico psicanalista, veio me avisar que o lourinho estava trepado em seu telhado desde cedo. Estava chovendo e não havia ninguém em casa. Eu tinha ido trabalhar em São Paulo e não me lembro porque nem nossa empregada, nem a Maria Lúcia estavam lá. Encostei nossa escada de pintor no muro e, levantando o poleiro para que o visse, chamei o lourinho. Hesitou uns cinco minutos, mas acabou voando para o poleiro, aparentemente com uma fome danada.
Anos depois nosso lourinho sumiu. Tivemos de nos conformar supondo que finalmente um gavião havia o pego num vôo rasante de quase duzentos quilômetros por hora. Por vários dias seguidos chamamos o lourinho em diferentes momentos do dia. Maria Lúcia ficou até rouca de tanto gritar alto, torcendo para ser ouvida.
Passado a tempestade emocional, de tanto que amávamos nosso bichinho, nossa empregada que hoje está conosco há quase trinta anos, veio nos contar, após um ano, que, na verdade, o lourinho segurando-se nos ramos da hera figueira (Ficus punila, unha-de-gato), galgou nosso muro e saltou no meio dos dois cães policiais que lá se encontravam, soltos no quintal do vizinho. Rasgaram-no em pedacinhos, em meio a pavorosos gritos de dor. Confiava nos canídeos devido a sua vivência aqui em casa.


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