A VENTURA DE GAMALIELZINHO
Os Martins do Monte tinham sua
origem, como a maioria dos que habitavam aquele requintado bairro, no velho
Portugal. E se isso, por um lado, dava-lhes certa superioridade e permitia-lhes
uma posição sobranceira, por outro lado, deixava-os meio inibidos. Não se
aventuravam muito a perquirir origens. Quem sabe tivessem sido seus ancestrais
‘degredados filhos de Eva’, que o Senhor Rei banira num ato de colérica
majestade?
De qualquer modo, ou por pura sorte
ou por real mérito, a família toda era respeitada, e não havia desvelada mãe
que não tentasse o acasalamento de suas filhas com um dos inúmeros varões dos
Martins do Monte.
A matriarca tinha estranho nome que
o pai, rico latifundiário, na paucidade dos seus conhecimentos, lhe dera:
Rimada. Chamavam-na, na intimidade, carinhosamente, Da. Rima. Dourava-se, assim,
o esdrúxulo nome. O apodo rimava com o lindo rosto, onde expressivos negros
olhos separavam um gracioso e arrebitado nariz, a tez morena como se fora
misteriosa moura, o todo de mulher que sabe impor sua vontade pela sabedoria e
pela coragem: uma senhora! Habitavam um casarão totalmente rodeado por
trabalhadas colunas romanas de puro mármore, que o avô trouxera diretamente da
Itália e que sustentavam um largo alpendre, onde a meninada toda fazia suas
estripulias, sem chegar a quebrar, com indesejável frequência, ricos biscuits.
Para maior pomposidade da casa dos
Martins do Monte, o engenheiro a construíra elevando-a do chão, de modo a
deixá-la mais alta que todas as outras residências da redondeza, encimada que
estava sobre um porão. Destinava-se o mesmo à guarda da desusada parafernália
da família e era admitido pelas crianças da região como mal-assombrado.
Dizia-se, em rodas noturnas, de
pura charla da meninada, que furtivos vultos de escravos negros, os dorsos nus
e reluzentes de suor, passavam esgueirando-se pelas entradas de luz do porão,
guardadas por pequenas barras de ferro trabalhado. Não havia por ali menino que
não se tivesse quedado diante daquelas entradas, os olhos hipnotizados, à
procura de desvendar os mistérios que dela se contavam. Havia até quem jurasse
ter ouvido pungidos ais dessas pobres criaturas, após estalidos como o de
chicote ferindo rija carne.
Nunca se soube até hoje se verdade
ou não! Também nenhum dos meninos se aventurara a adentrar tão soturno porão.
Julho era o mês de férias, e Da.
Rima, com a costumeira paciência, fizera as malas da família e partira para a
indefectível temporada no sítio da serra. Nada mais merecido prêmio que essa
viagem para coroar a labuta diária do Dr. Manoel Augusto, que sofria de sol a
sol, nos foros da cidade, em homéricas contendas jurídicas, conhecido que era
como um dos melhores causídicos. Não que considerasse o lugar de morada pouco
agradável. Longe disso, mas o ar puro da serra, o esmagador domínio do verde, o
viço indescritível da punjante flora, tudo era motivo para aquisição de
energia, de revigoramento do espírito. Certamente por mera maldade, dizia-se
até que o Dr. ‘Manelaugusto’ ansiava por esse período, quando, longe das
contendas jurídicas, esquecidos os débitos, adquiria maior vigor sexual. O fato
é que voltava toda família numa esfuziante alegria, que ia definhando,
lentamente, no correr dos meses, até que novas férias viessem.
A manhã seguinte era uma dessas
manhãs frescas de julho. O velho casarão se deixa ver agora, banhado pelo sol
de ouro que desenhava, no espaço, fachos tremulantes de luz. Filetes de luz
escoavam por dentre as copas orvalhadas das seculares árvores, que, suavemente,
emolduravam o pomar.
Face ao primitivismo da cidade,
para completar o encanto de tão bucólica manhã, dançavam no ar vaporosas
gotículas que emprestavam certo ar de misterioso fog londrino, impedindo que as coisas fossem vistas nas suas
plenitudes, em virtude da grumosa atmosfera.
Somava-se a isso inusitado
silêncio. É que ficaram no casarão apenas os dois irmãos, Tadeu e Gamaliel.
Ficara também Teresa de Jesus, esbelta preta, de largas ancas, sorriso puro e
branco como um chumaço de algodão, na beleza estonteante de seus dezoito anos.
Senhora de uma macropigia graciosa e elegante, balouçava sensual,
nas passadas despretensiosas da menina mulher. Ficara, segundo ordens maternas,
para providenciar o sustento dos dois queridos rebentos que tomavam aulas
particulares na tentativa de diminuir a ignorância demonstrada nas notas
finais. Deixara-os a mãe com o coração partido.
Apesar do esplendor daquela manhã,
Gamaliel acordara com o coração angustiado. Faziam-lhe falta as reclamações
constantes da mãe, as refregas relâmpago com os irmãos, dissolvidas sempre com
a terrível advertência materna: – Deixa seu pai chegar!
Nem o brilho da manhã o estimulava a
debruçar-se sobre os livros. Olhava indiferente para o pomar, quando percebeu,
de soslaio, a passagem fugidia de Maria Teresa para o velho porão.
Aguçou-lhe a curiosidade! O que
levaria aquela serviçal da casa a entrar no lugar menos usado da residência?
Desceu célere a escadaria que
desaguava ao lado da porta do porão. Entreabriu-a cuidadosamente, evitando o
rangido que as cansadas e enferrujadas dobradiças certamente fariam. E a
escuridão desfeita parcialmente, de espaço a espaço, pelas entradas de ar e de luz,
mal permitia ver, num canto de grossas e pesadas paredes cobertas de mofo, o perfil
desnudo de Maria Teresa, displicentemente desfazendo o penteado, numa pose que
parecia ter sido roubada de Renoir, quando criou o seu Banhista Ajeitando o Cabelo.
É preciso esclarecer que
Gamalielzinho fora iniciado no mundo das artes ainda muito criança, de modo que
tinha a mania, considerada esnobe pelos amigos, de o que visse de belo comparar
com obras de famosos impressionistas. Assim, não é de se admirar que a nudez de
Maria Teresa o tivesse levado a uma discussão do aspecto puramente estético, trazendo-lhe
à mente um sem número de famosos pintores clássicos.
Seria de Rubens, de Degas, de
Delacroix ou de Cézanne que fora roubada aquela visão?
Lembrou-se do famoso quadro Toilet de Venus. Não, decididamente não!
Maria Teresa não era opulenta como a Vênus do famoso Rubens nem branca. Muito
pelo contrário, sua cor era mais atraente, porque o negro lhe evocava mistério,
a vontade imensa de descobrir o desconhecido, mergulhar nele de olhos fechados
e deixar que a escuridão transmitisse, por osmose, todos os seus segredos, os
seus mistérios...
De repente, sem saber por que, uma
gigantesca onda de voluptuosa concupiscência assomou-lhe o espírito,
acelerando-lhe o ritmo cardíaco, aquecendo-lhe a alma toda, impulsionando-o em
direção àquele maravilhoso quadro. Percebendo a intromissão, Maria Teresa
correu como uma gazela assustada, diante da iminência de ataque de maldoso
caçador.
Teriam decorridos minutos, horas,
séculos? A verdade é que uma corrida desesperada pelo vasto porão travou-se.
Percebeu, agora, Gamalielzinho que Maria Teresa, propositadamente, ora se
deixava quase pegar ora se afastava lépida, com uma agilidade ferina,
escondendo-se em desabalada carreira nos inúmeros cubículos que o porão
possuía.
Pobre Gamaliel! Via dois rijos
seios, agredindo a lei da gravidade, apontando insolentes para os céus dois
negros mamilos emoldurados por larga auréola de plúmbea cor, largas ancas
alternando-se em movimentos rítmicos na sensual corrida e... não poder
senti-los junto a seu corpo de adolescente imberbe!
Num esforço supremo que só aos
moribundos é dado mostrar no instante último da vida, Gamalielzinho vence a
corrida e... finalmente exaustos, os poros excitados, deixaram-se abraçar como
nunca tinha Gamaliel abraçado, juntando-se tanto um ao outro que já não eram
mais dois, pois que se imiscuíram numa autofagia de doce encanto.
No andar superior, o irmão mais
velho, ou porque quisesse mostrar falsa cultura ou porque fosse naturalmente
fidalgo, ouvia, numa velha e bolorenta eletrola, uma rapsódia de Paganini. A
impureza do som, extraído do cansado disco de cera cheirando a bafio e de
combalidas caixas acústicas, o bater cadenciados dos címbalos, o explodir
metálico dos pratos e o som estridente dos trompetes e cornetas serviram de
marca-passo à cavalgada amorosa de Gamaliel e Maria Teresa.
Os corpos ora flutuavam
harmonicamente, como se fossem regidos por invisível maestro, ora passavam a um
ritmo tão ativo e rápido, qual o som do piano que agora se sobressaía, ímpar, na
grandiloquência de sua beleza musical.
Vezes outras, o tom nasalado dos
oboés fazia coro aos gemidos abafados de sua deusa de ébano. É verdade que ele
não a queria ver como deusa. Humilde por natureza, Gamaliel achava que a um
simples mortal como ele, quando muito, poder-se-ia permitir um relacionamento
com uma princesa. Sim, era, sem dúvidas, a dona de tão divinamente esculpido
corpo uma princesa africana que viera num desses famigerados navios negreiros.
Talvez o cansaço, talvez mesmo a inebriante
sensação de pós-amor fossem responsáveis por sentimentos tão contraditórios que
agora lhe açulavam a mente. De um lado, tinha figadal ódio aos que criaram os
tais navios; por outro lado, agradecia a Deus, compungido (com os lábios ainda
trêmulos de tanto terem sofregamente beijado), o rapto daqueles negros sem o
qual não estaria ele vivendo aquele momento.
Enfim, terminada a sôfrega peleja, cessada a
eletrizante coreografia daquele idílico amor, arfantes ainda os desnudos e
suarentos corpos expostos, num torpor decorrente do natural esforço e do
próprio ambiente de vetustas paredes, tendo como travesseiro os macios pelos de
sua princesa, Gamaliel adormeceu num desejo de um sono contínuo, perpetuado até
as férias vindouras.
Sociedade Brasileira de Médicos
Escritores
Prescrições – Fortaleza: SOBRAMES
Regional do Ceará 1994
P.S: APODO = zombaria, mofa, motejo (Novo
Dicionário Aurélio);
APODO = 1 dito irônico ou espirituoso; gracejo, chalaça
2 comparação jocosa ou
ultrajante
3 denominação picaresca e, por
vezes, afrontosa, atribuída a alguém em razão, p.ex., de alguma característica
sua, física ou moral; alcunha, apodadura (Dicionário Houaiss)
Parabéns pelo belo conto erótico. Abraço ana Margarida
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