Dr. Flávio Leitão - Ex-presidente da Sobrames-CE |
A Felicidade
“La felicidad consiste en ser un
desgraciado que se sienta feliz. “.
Ramón
Gómez de La Serna
Eu
não sei porque a Irmã Valdetrudes instara, novamente, o Dr. Navígio a
participar de suas atividades benemerentes.
Há
muitos anos, quando ele, com muito orgulho e vaidade, era ainda estudante dos
dois últimos anos da Faculdade de Medicina, ela o convencera, com relativa
facilidade, a participar do Ambulatório das Irmãs de Caridade, destinado aos
pobres do bairro.
Ali,
ele atendia, como se médico fora, os incontáveis casos de verminose e
desnutrição dos protegidos da Irmã Valdetrudes.
Era
auxiliado por graciosas e coquetes mocinhas de famoso colégio da alta
sociedade, que se travestiam de enfermeiras e se transformavam em copartícipes
daquele exercício ilegal da medicina, muito embora fosse uma atividade
humanitária, um meritório labor.
Àquela
época, entendera o convite da Irmã como um sinal da graça divina, pois há algum tempo pusera
seu olhar num gracioso rosto, perfil helênico, sedutor, irresistivelmente
gracioso.
Para complementar a excelsitude de beleza de
tão mimosa ninfa, possuia a mesma um corpo de deusa grega, que impressionava,
não só pelo deslumbramento de harmoniosos seios como pela voluptuosidade de
quadris cinzelados por magistral escultor. Ela fazia parte do valoroso corpo de
“enfermagem” da Irmã Valdetrudes.
Por
outro lado, a aceitação ao convite da prestimosa Irmã não deixava de ser um ato
caritativo e altruístico dos mais elogiáveis, que o enchia de felicidade e que lhe
aplacava um pouco o temor de condenação no juizo final.
Na
realidade nada desse trabalho ele auferia, a não ser o agradecimento humilde e
sincero de seus miseráveis clientes e uma duvidosa recompensa de namoro com a
zelosa e solícita musa de seus sonhos.
É
bom que se ressalte não ter sido o Dr. Navígio o primeiro a inventar esta moda
de valer-se do véu de santa benemerência e do aparente amor ao próximo para
obter vantagens celestiais.
É
fato conhecido da História que o famoso navegador português - Cristóvão Colombo
- encontrou a mulher com quem dividiria sua vida até o fim de seus dias, em
piedosas e constantes idas à catedral de Sevilha.
E
só para nos atermos a apenas dois nomes famosos da história da humanidade,
refiro-me agora a Agostinho. O famoso bispo de Hipona, o filho predileto de
Santa Mônica, também aproveitava-se do horário dedicado às suas compungidas
preces nas igrejas romanas para, discretamente, procurar alguma misericordiosa
virgem que lhe saciasse a sensualiade, a volúpia de seus sonhos.
O
fato é que, passados mais de quarenta anos, o Dr. Navígio viu-se, no dizer do
poeta, não mais que de repente, novamente,
atendendo, a pedido da mesma Irmã Valdetrudes, pobres e desprotegidos cidadãos.
Tratava-se
então de clientela constituida de sobrados da vida. Cerca de cento e cinquenta
almas desnutridas, maltrapilhas, caquéticas, imundas, mal cheirosas,
cronicamente famintas, desesperançosas, desmotivadas, dominadas pelos vícios
mais degradantes que soem acometer os trapos humanos que perambulam,
solitários, pelas ruas das grandes metrópoles.
Eram estes os que faziam parte do programa que
a irmã Valdetrudes, heróica e destemidamente criara, sob o pomposo e
contundente nome de Projeto São Vicente
de Paulo de Acolhimento aos Moradores de
Rua!
Não
quero passar a ideia de que o Dr. Navígio fosse um elitista e que sua atenção
aos pobres tenha se limitado ao tempo de acadêmico de medicina, comportamento
comum à maioria de seus colegas de profissão.
Na
verdade ele passou a vida inteira dispensando parte de sua atividade médica, ao
atendimento despretencioso de pacientes no ambulatório da Faculdade de
Medicina.
E
para sermos fieis à verdade, Navígio nunca se recusara, a pedido de quem quer
que fosse, a atender pessoa desvalida dispensando os devidos honorários, mesmo sendo na sua conceituada clínica privada.
Vale
salientar que sua clientela, no ambulatório da Faculdade de Medicina, embora
constituida por infelizes criaturas, diferiam um pouco das protegidas pelo atual programa da Irmã
Valdetrudes, vez que tinham endereço, possuiam nome, ostentavam um CPF.
Alimentavam-se
precariamente mas não chegavam à inanição. Tinham dificuldade de higiene –
banheiro sem água encanada – mas de qualquer modo dispunham de uma tina d’agua
de onde podiam retirar um caneco para molhar-lhes as partes e aliviar-lhes o
calor do dia.
Não
dispunham de sanitários porém, num canto de seus mal cuidados terrenos, tinham
um buraco tosco ao rés do chão, protegido por duas táboas, que imitavam uma patente
turca e cercado por velhas folhas de zinco, o que lhes proporcionavam uma certa
privacidade, no momento de se aliviarem da incômoda carga de seus intestinos.
Enfim,
eram pessoas que, eufemisticamente, os sociólogos classificam na qualidade de
pertencentes à classe E, situados abaixo da linha de pobreza. Eram entes que
estão a um passo de serem considerados aspirantes à cidadania e portanto úteis
para a manipulação das estatísticas governamentais.
Já
no Projeto São Vicente de Paulo de Acolhimento aos Moradores de Rua, contudo, o
quadro era outro. Diferentemente dos pacientes do ambulatório da Faculade, os
da Irmã Valdetrudes diferiam, pelo sofrimento dantesco, chocante, deprimente,
inaceitável, com que conviviam.
Vou
dar-lhes um único exemplo para justificar porque o Dr. Navígio não conteve suas
lágrimas, no dia em que voltou a atender ao caprichoso pedido da Irmã
Valdetrudes.
O
terceiro cliente daquele dia em que retornou às suas atividades filantrópicas e
humanitárias foi uma mulher de rosto comum, transmitindo certo grau de
displicência, de indiferença ou de estoicismo? Difícil concluir. Apesar dos
trajes, tinha, paradoxalmente, um certo aspecto de nobreza no porte, de
altivez, de estoicismo grego, de andar fidalgo.
Chamava-se
Maria das Dores. Não conheceu pai, nem tão pouco mãe. Desconhecia a terra que a
acolhera, ao nascer. Tinha uma vaga
ideia de que aos cinco anos fora doada à uma piedosa familia, da terra dos
monolitos, que a criara numa versão moderna de escravagismo.
À
noite, após os filhos da casa se divertirem, inocentemente, amedrontando-a com a possibilidade do
lobishomen vir carregá-la pela madrugada, era mandada para seu quarto, isolado nos
fundos de um terreno destituido de iluminação.
Sentia-se toda dominada pelo medo de ser
visitada por seres de outro mundo, almas penadas que poderiam vir-lhe puxar os
trapos que lhe serviam de lençol, numa concorrência sádica com o lobishomem.
Ficava
horas a fio, até que o cansaço a dominasse ou o frio da madrugada a fustigasse,
com o rostinho preso ao chão, observando por uma fresta da porta, com seus
olhinhos marejados por amargas lágrimas, os passos aleatórios das pessoas da
casa.
Aquela
visão ligava a infeliz criaturinha ao mundo real, afastando-a do risco de ser
abduzida por um ente extraterreno ou mesmo pelo temível lobishomem.
Nenhum
fato auspicioso fora registrado pelo seu
cérebro, em toda sua vida.
Lembrava-se
apenas que sempre apanhara. Nunca soube o motivo da agressão. Ficara nitida,
contudo, a lembrança dos socos, das palmadas, dos puxavões de cabelo, dos
cocorotes, das torções de orelha, dos chutes, dos palavrões, da bestialidade
humana, sempre culpada, sempre sofrida, sempre acusada, sem vislumbre de
perdão.
Terminou
por, num esforço heroico, fugir de Quixadá, vindo para Fortaleza ainda
adolescente, preferindo passar a noite
na rua a ter que ficar agrilhoada aos maus tratos dos bondosos padrinhos do
interior e das sorridentes crianças da casa grande.
Sofreu
a violência ignominiosa do estupro, teve dois maridos, dois brutos, dois
autômatos, sem alma, sem coração, sem sentimento. Cada um deles vomitou-lhe no
útero a lascívia de seu gozo e fez-lhe um filho.
Apesar
de tudo manteve-se pura, diria, imaculada. Não se prostituiu, pois mantinha no
concubinato, fidelidade sincera e toda conjunção carnal que acaso viesse a ter fôra,
motivada por uma admiração irresistível ao homem que a possuia, um amor
primitivo e espontâneo, expressão legítima de sua paixão.
Doou o primeiro filho, mas não se
atreveu a separar-se do segundo.
Tentou
dar amor ao caçula, mas a rua terminou por diplomá-lo no reino das drogas.
Uma amiga de infortúnio ofereceu-lhe
um quarto para dormir. Negou-se a aceitar, pois o filho furtar-lhe-ia tudo para
trocar por droga.
A
Prefeitura acenou-lhe com a possibilidade de uma casa, num conjunto
habitacional, longe do centro de Fortaleza. Também não viu como conciliar a
distante moradia com a constante vigilância ao filho drogado. Continuou
dormindo nos bancos das praças, debaixo das marquises dos velhos prédios do
centro.
Quando
o sono e o cansaço a dominavam, para fugir do incômodo da perseguição de homens
ávidos por momentos de orgia, feras no cio, farejando o gozo da carne,
procurava, sempre que possível, uma farmácia que tivesse um segurança de alguma
empresa. Alí, então, dormia, sob a falsa impressão de estar protegida dos enxeridos.
A
maioria das noites passava-as insone, espreitando o filho, vigiando-o,
furtivamente, pois temia que outros moradores de rua o agredissem no momento de
suas desorientações e desatinos, provocados pelo efeito alucinógeno e deletério
do vício.
O
Dr. Navígio viu-a numa manhã, depois de uma noite indormida.
Mesmo
sem carteira de identidade, sem CPF, sem moradia, julgava-se feliz.
Fundamentava
esta incongruente felicidade na ajuda que prestava na cozinha do famoso Projeto São Vicente de Paulo de Acolhimento
aos Moradores de Rua.
Ali
preparava a macarronada para os cento e cinquenta companheiros de infortúnio,
na certeza de que ao meio dia teria também o seu almoço.
Comprazia-se
com a certeza de que teria uma palavra amiga da Irmã Valdetrudes, que, solícita,
tocar-lhe-ia o sujo ombro e dir-lhe-ia, com um sorriso franco, uma palavra de
carinho.
Enchia-se
de infantil satisfação por poder utilizar o banheiro para lavar seus trapos, na
certeza de ver-se livre do lodo que lhe cobria as carnes ressequidas com um
banho de chuveiro que o programa lhe proporcionava.
Renovava-se na antevisão de que descansaria, por alguns minutos, numa
cadeira, recuperando forças para mais uma noite, insone, longa, solitária,
pastoreando, nas sombras frias da madrugada, o filho drogado, razão única de
seu viver . Por tudo isto julgava-se feliz…
Murmúrios Literários Ant. Sobrames-Ce 2012
(pag.99-104)
Flávio, cumprimento-o pela narrativa que retrata uma realidade à qual viramos a cara e ignoramos propositalmente. É de cortar o coração. Parabéns pelo seu estilo e coragem de nos mostrar uma verdade. William Moffitt Harris, médico sobramista de Campinas-SP, da Sobrames-CE
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