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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

POR SEBASTIÃO DIÓGENES - RAULO

Dr. Sebastião Diógenes - Médico e Tesoureiro da SOBRAMES-CE

























































  Raulo
    Ele estudava em um renomado colégio de formação marista, em Fortaleza. Era inteligente e tinha futuro. Sempre foi o primeiro da classe, um assíduo frequentador do quadro de honra e um colecionador de medalhas pela seleção de futebol de salão do colégio. Dotado de um carisma fora do comum, tornou-se líder da turma e um dos colegas mais estimado. A prosódia do nome era dúbia: uns pronunciavam /Ra-u-lo/, outros /Rau-lo/. A ortoépia na linguagem popular tem dessas coisas.
    Um dos colegas pertencia a uma tradicional família de Redenção, filho do seu Romão, proprietário de um vasto canavial. Costumeiramente, Romãozinho, Raulo e mais dois colegas passavam os finais de semana nesta agradável cidade. Passeios noturnos pela praça, cinemas, tertúlias, enfim, não tardou Raulo apaixonar-se pela filha do canavieiro Bonfim, detentor de poder político e econômico da região. Era um autêntico coronel rural, homem de pouca conversa e rude no trato com as pessoas.
    O quarteto era dado às serenatas. Dois cantavam, um tocava violão e Raulo figurava de guardião da garrafa de aguardente. Realizavam as serestas aos sábados. Quando chegou à vez de realizá-la na casa da namorada, Raulo teve receio, o coronel poderia não aprovar. Os colegas incentivaram-no, argumentaram que o namoro deles estava garantido, que o coronel lhe ia com a cara. Convenceram-no.
    Os jovens serviram-se da bebida, porque nessas horas a coragem se faz necessária, e dirigiram-se à casa de Rochele, bem ali, em Acarape. Raulo não bebia, nem possuía dotes artísticos, sua única tarefa na seresteira missão era cuidar da garrafa de cachaça.
    Um dos vocalistas solicitou um dó maior e o pequeno concerto para violão despertou a casa. O coronel não gostou do cenário, principalmente, quando viu o pretenso genro com aquela garrafa nas mãos. Uma descompostura! Ameaçou extirpar-lhe as gônadas e ordenou que se retirassem, os boêmios, com a rispidez que a patente lhe conferia. Rochele tentou falar ao pai, apresentar os contra-argumentos que lhe pedia o coração. O vetusto coronel fez calar-lhe a boca e decretou o fim do namoro.
    No dia seguinte, com lágrimas, Rochele cumpriu a extrema ordem paterna. Tempos depois, os canavieiros encontraram-se, eram bons vizinhos, e ficaram de palestra sobre os pormenores da fatídica serenata. Coronel Bonfim confirmou que realmente mandara acabar o namoro, não tinha filha para casar com cachaceiro.
    - Pois fique sabendo, amigo Bonfim, o Raulo é o único deles que não bebe!
    Com a anuência do pai, à semelhança de remorso, a filha cuidou de reparar o lamentável equívoco. Ainda enamorada, nutria-se de esperança. Rochele pediu-lhe que desconsiderasse a desfeita, implorou em favor do amor. Vã diligência, o abstêmio havia conhecido Lucíola, uma distinção de moça e muito inteligente.
Na escrituração de sua luminosa trajetória de vida, confirmou-se o que se vaticinara. Realmente, o rapaz tinha futuro, apesar do desmedido golpe que sofrera com a prematura morte do pai. Tornou-se o chefe da família, obrigando-se a adiar o sonho de ser médico. Era-lhe preciso trabalhar. Foi um excelente funcionário de carreira da mais importante instituição financeira do país. Depois, com enormes esforços, conseguiu conciliar o trabalho com o estudo, e graduou-se em medicina. Especializou-se em urologia.
   Casado há 42 anos, nunca faltou com o respeito ao nono mandamento das tábuas de Moisés. Dona Lucíola, mulher devota e de magnânimo espírito, nunca se cansou de rezar adiante do oratório de cumaru e agradecer o destino daquela bendita garrafa de cachaça – a Bagageira – que era produzida e engarrafada, ali mesmo, em Acarape (logo por quem...!) pelo coronel Bonfim.
  As obras do destino pregam surpresas inimagináveis. Dois netos de Dr. Raulo são, em iguais doses, netos de dona Rochele e, por conseguinte, bisnetos do coronel Bonfim.   É de boa razão tornar claro que jamais houve sucessos guardados em segredo do longínquo passado daquele amor casto dos enamorados de Redenção.  Deu-se que a filha única de dona Rochele casou-se com o primogênito de Dr. Raulo. Casamento de gosto, daria descendência. Eles se conheceram durante uma visita cultural ao famoso Museu da Cachaça de Redenção, na histórica cidade do Ceará, cujo nome encerra uns dos significados mais expressivos do léxico do poeta José Valdivino de Carvalho: liberdade e salvação.
  E tudo foi bem assim, à maneira das épocas, do pretérito ao presente, sem a menor soma de imaginação.
Sebastião Diógenes.
Julho de 2011.

POR FLÁVIO LEITÃO - A EXECUÇÃO



Dr. Flávio Leitão - Médico e Ex-Presidente da SOBRAMES-CE
                                          A EXECUÇÃO


 Quanto menos sabedoria, maior a felicidade – Erasmus de Rotterdam


Não se sabe ao certo porque o professor Absalão, um protestante fundamentalista, conhecedor de cor do significado de todos os milhares de nomes bíblicos que povoam as incontáveis histórias do Sagrado Livro, dera aos seus 12 filhos epítetos de personagens do livro santo.

Dizem os mais aproximados a ele que se tratava de tradição familiar quincentenária, iniciada no tataravô de seu tataravô, para comprovar sua origem judaica da qual sentia um santo orgulho.

Por exigência da mulher, contudo, que por seu turno primava em ser uma  católica ortodoxa, ao nascer-lhe o primeiro da numerosa prole, levou-o à pia batismal da igrejinha de sua cidade natal, onde paranifado pelo piedoso padre Moacir, recebeu o incomum nome de Obede .

Parecia ter o pai poderes de pitonisa, pois se o significado do esdrúxulo nome é definir “aquele que serve”, passou realmente Obede toda sua vida servindo, desinteressadamente, com esfuziante alegria que lhe era inerente, aos mais necessitados da sociedade moderna – os sofridos e injustiçados operários. Serviço aliás, duro de ser desempenhado mas que ele executava com afinco e denodo, na qualidade de advogado trabalhista.

É do conhecimento de todos que a Lei Trabalhista é benevolente para com o operário, fugindo assim, ao raciocínio lógico do sofista Cálicles de que a Lei é a vontade do tirano.

Mas, apesar da assertiva grega de ser justo o que convém ao mais forte, o Dr. Obede saia-se vitorioso, na maioria de suas lides a favor de seus constituintes, indiscutivelmente os mais fracos nesse tipo de contenda.

Mesmo diante da justíssima sugestão de Santo Agostinho, o bispo de Hipona de que a Lei deva tratar diferentemente, os socialmente desiguais, havia um grande fosso cultural, separando as duas partes, dificultando, sobremaneira, o trabalho de Obede.

De um lado as matreirices de alguns patrões, tudo contribuindo para anular a aparente benesse da Lei e, consequentemente tornar árduo o trabalho de Obede, do outro lado o operário bobo, analfabeto, desconhecedor de seu valor intrínseco.

Com o passar do tempo, entretanto, primando por se comportar como intransigente defensor do operariado, nas frequentes contendas entre patrão e operário, tornou-se Obede conhecido e próspero advogado, detentor de famosa banca advocatícia, mesmo tendo optado pelo lado mais fraco da contenda.

Recusara, em várias ocasiões, quando ainda jovem, tentadoras ofertas para engajar-se em escritórios de grandes empresas que o compensariam com substancial e invejável salario.

A  todo canto de sereia recusou-se ouvi-lo, sem desdém, mas com determinismo, mantendo-se fiel aos ditames de seu foro íntimo que o impelia ao devotamento total aos pertencentes ao lumpemproletariado, no dizer do jargão marxista.

Certa tarde reaparece-lhe no escritório, fim de expediente, um  cliente operário, praticamente analfabeto, muito cioso da religião que abraçara - o pentecostalismo -.

Era desses que se julgam arautos da fé cristã, passando ao exercício intempestivo e enfadonho da citação automática de alguns dísticos bíblicos, que logo identificam os seguidores de Lutero, terminando pelo “Deus seja louvado!”. Terminada a litania indaga ao Dr. Obede pelo seu processo.

Verificadas as fichas cadastrais de todos os constituintes iniciados pela letra J, finalmente chega-se à do senhor José Ataliba da Silva Beraldo.

O Dr. Obede faz uma leitura dinâmica da ficha e abre-se em um agradável sorriso, afirmando: seu Beraldo, o Juiz deu-nos ganho de causa. Infelizmente seu ex-patrão recusou-se a pagar, razão porque vou ter que executá-lo.

Seu Beraldo demonstrou certo grau de alegria, mas depois, entre constrangido pelo inusitado da proposta que acabara de ouvir de seu advogado e ao mesmo tempo, querendo um mínimo de Justiça replicou: Doutor eu sou da religião Pentecostal, assim, não concordo em executar o ex-patrão, muito embora ele o mereça.

Prefiro, portanto, por causa desta santa religião, que o senhor mande apenas dar uma boa pisa no homem...
                                                                       Flávio Leitão

POR VICENTE ALENCAR - SONHOS

Vicente Alencar - Jornalista e Membro da SOBRAMES-CE

SONHOS

Dorme menina amada,
sabedora que és,
amante dos meus desejos.
Te quero, te quero mais,
a cada momento.

Dorme menina amada,
pois teu repouso noturno
acalma minha alma
na certeza que sonhas sorrindo,
tanto na noite quente e negra
como na aurora que surge com um novo dia,
mostrando minha atenção,
meu amor por tí,
a cada manhã que chega,
renovando a alegria de viver.

Vicente Alencar
(Da Academia Fortalezense de Letras e da SOBRAMES).

domingo, 10 de fevereiro de 2013

POR ANA MARGARIDA - FIM DE TARDE



Dra. Ana Margarida Arruda Rosemberg - Médica e Secretária da SOBRAMES-CE

  Foto feita pela fotógrafa Jana Arruda, no dia 27 de maio de 2005 - Fim de tarde, em Sampa.

Texto premiado em 2º lugar na categoria Prosa, no I concurso Literário dos Profissionais de Saúde de Nível Superior do Estado do Ceará: PRÊMIO SOBRAMES-CE/UNIMED FORTALEZA DE LITERATURA - 2011

                                            FIM DE TARDE 
     Há dias o frio não dava trégua em Sampa. O cruzamento da Ipiranga com a São João regurgitava de gente naquele quase fim de tarde, do dia 27 de maio de 2005. O vento frio chicoteava nossas faces. Eu, bem agasalhada, carregava uma mochila com roupas, sapatos, jóias e maquiagem. Você levava nas costas sua câmera fotográfica, além de um ventilador em uma das mãos.
      Entramos rapidamente no prédio belle époque e fomos direto ao 7º andar. Ao entrarmos no estúdio, o calor nos envolveu como em um abraço carinhoso. Sentei-me no confortável sofá e relaxei por alguns minutos. Apreciei as artísticas fotos que cobriam as paredes e todo o estúdio tão bem arrumado. Senti orgulho de minha primogênita.
      Enquanto você preparava os apetrechos para mais uma sessão de fotos eu desmanchava a minha mochila. Fui, logo em seguida, calçando as meias finas que aos poucos foram cobrindo minhas pernas e me protegendo do frio. Vesti o meu blazer cor de rosa e calcei meu par de sapatos prateados de salto alto.
     Sentada em frente à janela fui sendo maquiada, por você, ao som dos beatles, que baixinho invadia o ambiente. Ao ouvir Girl fui tragada em uma viagem vertiginosa e voltei ao passado longínquo. A melodia e a letra, Is there anybody going to listen to my story. All about the girl who came to stay? Ah, girl, girl, girl, me fez reviver momentos passados ao seu lado e, de repente, nosso tempo de mãe e filha se fez presente.
      Maquiada e arrumada entreguei-me a você, fotógrafa, minha filha, que com técnica e competência me via através de suas lentes e captava aqueles momentos preciosos. Momentos de perfeita comunhão entre mãe e filha.
      O casaco de pele de lontra aqueceu-me por instantes e ao ouvir a melodia de Eleanor Rigby, Ah, look at all the lonely people. Eleanor Rigby, picks up the nic..., voltei novamente ao passado e revivi o momento de seu nascimento. A emoção que você me proporcionou ao vir ao mundo, sem dúvida, a maior que eu já senti em toda a minha vida, invadiu, novamente, a minha alma. Mal pude acreditar que o tempo havia passado e que estava diante de uma profissional que se agigantava à medida que o trabalho ia sendo desenvolvido.
      E, assim, ao som dos beatles, você me fotografou em pé, sentada, deitada no sofá, recostada à porta com várias roupas e casacos diferentes.
     Quando, Lucy in the sky with diamonds invadiu o estúdio lembrei-me da história dos primeiros humanos e de Lucy que foi encontrada na África, mais precisamente em Hadar, na Etiópia, em 1974, onde viveu há 3.2 milhões de anos. O esqueleto lá encontrado, que foi atribuído a uma fêmea Australopithecus afarensis, era bípede e recebeu o nome de Lucy em homenagem à canção feita pelos beatles. A história tem dessas coisas.
     Cansadas, mas felizes, deixamos o estúdio quando o manto da noite já cobria Sampa. Em sua câmera fotográfica você levava, eternizados, aqueles preciosos instantes e o meu amor por você.                                                                           
                                                              Ana Margarida Rosemberg

sábado, 9 de fevereiro de 2013

POR SEBASTIÃO DIÓGENES - A CHACINA


Dr. Sebastião Diógenes - Médico e Tesoureiro da SOBRAMES-CE
                                            A CHACINA
                O tio materno trouxe o menino para criá-lo na cidade, a muitas léguas do norte de Minas, lugar da tragédia. As pessoas olhavam-no com grande compaixão, viam nele a graça do milagre, porque conheciam a história do assassínio da família. Único sobrevivente, o menino crescia, mostrava aos colegas na escola, com a natural inocência da idade, a cicatriz no braço que lhe dava uma ideia de herói.

            Conjecturas povoavam o imaginário popular. A irmã mais velha teria morrido com o meninozinho nos braços. A lâmina da faca, de muitas polegadas, ainda escorrendo o sangue dos pais e dos dois irmãos, atingiu-lhe o bíceps braquial antes de cortar o coração da irmã, que o continha contra o peito. O menino, que ainda não sabia falar, fora encontrado banhado de sangue ressequido ao lado do cadáver.

Eram seis horas quando o matador deu início o serviço de encomenda. O contrato seria para matar o pai, por uma suposta questão de terra, a disputa da nascente na divisa do terreno. Naquela fatídica hora, o pequeno fazendeiro estava no curral, sentado no banquinho de madeira tosca, fazendo a ordenha da manhã, quando foi mortalmente golpeado pelas costas. Não teve a chance de ver o assassino, só a mulher, nos afazeres da cozinha, o viu pela janela.

Deu-se sequência à tragédia: “Covarde, covarde”, correu a indefesa senhora em direção à porteira do curral. Os gritos desesperados acordaram os filhos, ainda meninos. Estremunhados, acorreram ao terreiro da casa, onde encontraram a mãe ensanguentada e agonizando. Tentaram escapar. Foram alcançados um por um pela mão assassina, esfaqueados, e jogados ao lado do corpo da mãe.

            O matador fazia as contas nos dedos banhados em sangue, faltava gente, conhecia a família: os pais e os quatro filhos, contando o novinho. Ficou atordoado, faltava gente, lembrou-se que havia uma menina, sim, quase mocinha. Ela escondera-se com o meninozinho no quarto dos arreios, um quartinho meio esquecido ao lado da casa. Teve a tenência de abafar o choro da criança com a concha da mão, não teve jeito. O malvado encontrou-os apavorados, ela encolhida a um canto, tremendo de medo, com os olhos arregalados em sugestão de súplica. O irmãozinho nos braços, contido contra o peito. O facínora não tivera piedade, aplicou-lhes um único golpe, os mataria de uma vez. Limpou a lâmina da faca de muitas polegadas na esteira que estava no cavalete das selas. Deu por encerrado o cruel serviço de encomenda. Certificou-se que não deixara testemunha e fugiu pela mata rala da caatinga dos gerais.

Apresentou-se ao mandante do crime para a prestação de contas do hediondo serviço. Os detalhes da matança. O desespero: o horror da elucidação.

- Você é louco?

Por outras mãos, o matador de encomenda não teria tido tempo de tomar ciência que o menino, que ainda não sabia falar, escapara com vida. Conjecturas, diligências...! Com o tempo caíram no esquecimento da polícia. Ninguém foi preso. E nunca se soube os verdadeiros nomes dos autores da chacina: nem do mandante, nem do Mata Cinco.

O menino da cicatriz no braço, que as pessoas da cidade viam nele a graça do milagre, vingou, amou, tornou-se pai e chegou a vovô, porque esta história é muito antiga.

                                                                   Sebastião Diógenes.

                                                                            21-10-2012.