Total de visualizações de página

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

POR FLÁVIO LEITÃO - A PRECORDIALGIA DO DR. SOFONIAS



Dr. Flávio Leitão - Médico e Ex-Presidente da SOBRAMES-CE


                          A PRECORDIALGIA  DO  DR.  SOFONIAS
                        “Ainda que a traição agrade, ao traidor tem- se aversão”                                                           Cervantes


Não havia quem não conhecesse o Dr. Sofonias naquele velho hospital de tantas homéricas lutas contra o sofrimento dos menos validos.

À esquisitice do nome, idéia de seu pai, um velho protestante ortodoxo que aproveitara o nascimento do filho para reverenciar o profeta menor, aliava uma esfuziante alegria, patenteada por baloiçante sorriso franco, sempre aflorando no canto esquerdo do lábio, infenso que era ao sofrimento que o rodeava.

Apesar do porte agigantado, da acentuada distância que se interpunha entre suas duas omoplatas, tinha o hercúleo torso curvado pelo meio século que já vivera, na azáfama do dia-a-dia e na paciente ausculta das queixas de seus sofridos pacientes. Esta postura deixava-o como se pretendesse fazer respeitosa vênia, ou como se quisesse  esconder-se, como um comum, no meio da multidão de resignados pacientes. Tinha assim aspecto de homem bom, indene às agruras naturais desta passageira vida.

Se os simples mortais adoravam o Dr. Sofonias quanto mais Margarida,  rechonchuda quarentona que há muito assediava o bom doutor, que por sobre não descobrir naquelas formas arredondadas motivo maior para despertar sua concupiscência, pesava-lhe nos ombros um temer exagerado à mulher, a quem parecia amar muito e sabia-se ser bastante ciosa quando se tratava de defender tão rico patrimônio. Más nem os santos resistiram ao espicaçar da luxúria, ao tridente dos ardilosos meneios de corpo de uma mulher, num momento maior de seus lascivos desejos.

E num fim de tarde ensolarada, quando somente o cimo das dunas ainda recebia alguns flavos e tímidos raios solares, terminada a árdua labuta de um agitado plantão, accedeu o Dr. Sofonias ao insistente convite da lúbrica Margarida. Ligou o motor do seu acanhado fusquinha e, sem dizer palavra, deu uma palmada carinhosa no roliço joelho de Margarida, partindo para a aventura primeira e mal planejada.

À medida que se aproximavam do motel, conhecido na irreverência dos colegas como “out line hospital” (hospital de apoio), quando mornos ventos soprados do Atlântico adentravam-lhe as narinas, criando um agradável torpor, o pensamento voava célere, antevendo momentos de agradável concupiscente  danação carnal. E o fardo inconveniente de seus rígidos códigos de moral, adquiridos, quando ainda menino, junto a piedosos jesuítas, tornou-se distante e nebuloso. Concomitantemente, um insidioso temor opunha-se à almejada felicidade. Lembrou-se de velho amigo, somente dois anos mais velho, que encontrara, no pecaminoso leito da amante, morte instantânea, dizia-se que por ruptura de vaso mal formado, no cérebro.

A companheira do Dr. Sofonias percebeu a angústia do inexperiente médico na arte dos folguedos extraconjugais. Tentou acalmar-lhe, habilidosa e experiente, acariciando-o ardilosamente, na tentativa de fustigar-lhe a chama carnal, enquanto Sofonias dirigia seu velho carro. Ele, contudo, persistia em situação incômoda e chegou a, profanamente, comparar seu caminho ao de Cristo, na Gólgota. E se autopunia pela comparação. Meu Deus,  porque lembrar-se àquela hora do sofrimento do Cristo? O Gólgota do Cristo foi para redimir a humanidade, altruísmo por excelência, enquanto que o seu, se é que se pode chamar de Gólgota, era apenas para coroar o forte instinto da sua masculina sexualidade, pura lasciva. Se não chegava a ser um blasfemo, era pelo menos um bizantino, em inoportuno instante estar, a suscitar discussões filosóficas que seguramente não iriam contribuir para seu momento de maior.

Felizmente as distâncias na cidade não eram grandes e logo se viu Sofonias adentrando, tímido, o Hall do acanhado hotel. Envergonhado, mas querendo simular inexistente autoconfiança de experimentado galã, pediu ao porteiro o melhor quarto.

Mesmo após iniciado o jogo frenético das carícia mútuas, dezenas de constrangedores pensamentos roubavam-lhe a tranqüilidade necessária para desempenhar-se à altura do que lhe solicitava a trêfega companheira. Soubera em conversa de corredores, (entre a solução de um difícil diagnóstico e o descanso do cafezinho), que a polícia costumava freqüentar hotéis daquele tipo, à procura de drogas e prostituição infantil. Meu Deus, não se enquadrava em nenhum dos ilícitos penais. Tranqüilizava-se passando aliviado a fronha do travesseiro no suarento rosto, como se tentasse apagar do espírito tão desconfortantes pensamentos. Assaltavam-lhe outros maus presságios. Outras espadas de Dômacles logo pendiam do teto mal iluminado do quarto úmido, prestes a despencarem todas por sobre seu desnudo e cabeludo corpo,   rasgando-lhe as vísceras, exposto ao escárnio dos amigos. Via-se no banco dos réus da aristocrática família, todos de dedo em riste, a acusá-lo, a escandalizarem-se pelo ignominioso deslize, a recriminá-lo:
            -Então Sofonias, nos enganamos por todos esses anos?
             -Ora, Sofonias, logo se via que aquela santidade toda não caberia dentro de você!

Magoou-se, em pensamento, profundamente, com o comentário seco e sibilino da sogra – Este cabra nunca me enganou!

E os filhos! Meu Deus, os filhos eram sua maior paixão. Nada no mundo deixaria ele acontecer que viesse magoar a qualquer da numerosa prole. Eram seus tesouros, sua vida, seu tudo, juntamente com a meiga e casta esposa.

E, lembrando-se do amigo que falecera em renhida refrega amorosa, tentava tranqüilizar-se, sabendo que era hígido. Jamais perdera seu precioso tempo em consultório de colegas, com queixas hipocondríacas. Restringia-se, quando muito, a fazer alguns exames que a repartição obrigava-o a submeter-se, por mera rotina. Também nunca tivera a curiosidade de conhecer o resultado dos tais exames. Tinha assim, uma saúde perfeita. Mas que diabos! Aquele último movimento que fizera para aconchegar melhor a companheira, despertou-lhe uma dor forte no peito. Instintivamente, Sofonias passou a fazer compressão, como se quisesse esmagar a dor, arrancá-la e atira-la com toda a força de seus braços no meio dos oceanos. Vã esperança. Tudo debalde. A dor se agigantava e adquiria agora, fórum de coisa grave. Um mal estar gástrico esfriava-lhe as vísceras, esvanecia seu prazer. Um suor frio porejava por toda a extensão do seu corpo. Desaparecera toda a manifestação de sua agigantada virilidade, minguara seu desejo. Convenceu-se do curso de infarto iminente e já se dispunha a pedir socorro quando Margarida, acostumada a lidar com pacientes, tranqüilizou-o:

-Mas Sofonias, você está sentindo dor no peito direito! E o coração não é à esquerda?

Um sorriso de alívio desabrochou na face simpática do Dr. Sofonias. Só agora percebia ele que seus fantasmas tinham-lhe pregado uma peça estúpida. Sofrera tanto que esgotara suas energias.

E apenas ficou com a satisfação que estava bem. Noutro dia, quem sabe, talvez pudesse desempenhar-se melhor...   
                                                          Flávio Leitão



Sociedade Brasileira de Médicos Escritores

Amostra Grátis – Fortaleza:SOBRAMES Regional do Ceará

Expressão Gráfica e Editora, 1994

 

POR MARTINHO RODRIGUES - TRANSCENDÊNCIA

Dr. Martinho Rodrigues - Médico e Membro da SOBRAMES-CE
            
                               TRANSCENDÊNCIA
Trago versos de acalanto
Para ornamentar teu sono
Em noite de aconchego e despedida.
São afagos cor-de-rosa
Para os teus cabelos,
Bálsamo mais puro
A desnudar teu corpo...
Tímido poema
Compondo o teu vestido.
Com um toque de Poesia,
Na manhã seguinte,
Pode o condão do afeto
Transcender o tempo...
Embora,
Antes do amanhecer, tenhas partido.
                  
                                    Martinho Rodrigues

O CHALÉ DA PEDRA

Como parte da programação da Jornada Interiorana da SOBRAMES-CE, realizada em março de 2011, na cidade de  Quixadá-CE, os sobramistas cearenses e acompanhantes visitaram o Chalé da Pedra, anexo do Centro Cultural Raquel de Queiroz.  
O Chalé da Pedra é uma construção histórica localizada em Quixadá, datada de 1920, que tem como um de seus principais atrativos, o fato de estar sobre um monolito. A construção teve vários usos. Em 2010, o Chalé foi restaurado para abrigar peças históricas que retratam a vida de Raquel de Queiroz.

SOBRAMISTAS VISITANDO O CHALÉ DA PEDRA
SOBRAMISTAS VISITANDO O CHALÉ DA PEDRA


POR ISAAC FURTADO - CANOS ATEROMATOSOS

Dr. Isaac Furtado- Médico e Membro da SOBRAMES-CE

CANOS ATEROMATOSOS 

 Poesia do livro: Mosaicos da Misericórdia, 2009


Um longo
corredor a ser
percorrido,
com a história
passando
desenhada
sob os meus pés.
À direita,
vários vultos
quase despidos,
mas, ao invés
de ódio e revolta,
a esperança se fez.
Acima de minha
cabeça, vejo fios
e canos corroídos,
como artérias
ateromatosas e
veias tortuosas de
lembranças reveses.
Isaac Furtado

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

POR RAYMUNDO SILVEIRA - AVESSO



AVESSO[1]


Dr. Raymundo Silveira - Médico e membro da SOBRAMES-CE

Raymundo Silveira[2]
AVESSO

De olhos fechados, um estudante de medicina no final do primeiro ano deve estar habilitado a introduzir dois dedos através de pequeno orifício no abdome de um cadáver e retirar a vesícula biliar sem deixar vestígios em outros órgãos. Eu estava.  Do terceiro ao sexto, ajudei professores de cirurgia a operar, quase diariamente. Daí em diante, eu mesmo operava. Diariamente.

Tinha pouco mais de quinze anos de formado, quando um colega me chamou, de repente, para auxiliá-lo na remoção de um apêndice inflamado. O ato mais simples com que um cirurgião se defronta. Manhã de domingo. Todo mundo de calção e maiô.

“Vocês têm de esperar. Em quarenta e cinco minutos... uma hora, no máximo, iremos à praia”.

Pedi para examinar o doente e perguntei onde doía:

“Aqui, doutor”.

Mas o aqui dele era meio diferente dos aquis de quem sofre de apendicite aguda. Um aqui que começava na boca do estômago e se espalhava para baixo. Não é raro que a doença comece deste jeito. Pelo contrário, é típico da fase inicial.

Nove horas. Incisão de dois centímetros à direita do pé da barriga. Em regra, mete-se uma pinça, puxa-se para fora um pouco de intestino, e o apêndice se entrega: “Cá estou eu: o culpado; poupem o meu pai, por favor; podem me levar.” O pai dele, claro, é o ceco. Mas não foi o caso deste. Escondeu-se. Covarde. O tamanho do corte dobrou: quatro centímetros. Procura, procura. Pinçava-se tudo, menos o que devia ser pinçado. Inclusive o tempo, que escorregava mais do que nunca. Duas horas de intervenção, sem que se interviesse em coisíssima nenhuma.

Terceiro talho partindo de sob a costela mindinho veio se encontrar com os seus colegas cá embaixo. Ganchos metálicos enganchados entre si repuxavam, para lados opostos, tudo o que era mole. Agora se podia ver, pegar e até pôr para fora o intestino grosso. Só que o ceco não aparecia. Meio-dia. Anestesista doido que aquilo acabasse. Não só porque ele também queria a sua praia mas, sobretudo pelo risco anestésico.

Meio-dia e meia.

“Terminem logo isso; se não encontram ceco é porque não tem...”.

“Onde já se viu gente não ter ceco, cara?”

 “Então achem logo; o paciente corre perigo”.

Uma da tarde. Todos com os nervos debaixo da pele, uma vez que as nossas não tinham flores, mas sapateando no tempo. Eu não tinha tomado café; engolia fome para ela não aumentar ainda mais. Então, um espírito se aproximou e soprou no meu ouvido: “manda ele fazer uma escuta no coração”. Eu repassei o recado:

“Tão mandando aqui tu fazer uma escuta no coração”.

“Mandando o quê? Quem? Tá doido?”

“Faz, homem de Deus, o quiéqui custa?”

Pois foi! O espírito só podia ser o do Dr. Fritz. O sujeito tinha os bofes todos trocados. Fazia mais de vinte e um anos que eu dissecava cadáveres ou operava, e jamais tinha visto gente avessada. Coração para a direita, fígado para a esquerda. Pulmão esquerdo capitalista, e o irmão dele, comunista. Passarinha na posição do Garrincha, apêndice na extrema esquerda. Só quando se cortou deste lado, o safado deu as caras. Ao terminar de retirá-lo e de coser todos os rasgões úteis e inúteis, passava das duas e meia.

Naquele domingo, a minha praia foi o fundo de uma rede de tucum armada no caramanchão do quintal. De uma velha televisão em preto e branco, um filme de Hitchcock assistia ao meu cansaço e à minha preguiça de viver...

                                                                        Raymundo Silveira



1  Capítulo do livro “LOUCA UMA OVA” – Prêmio Literário Para Autores Cearenses – 2010.


2  RAYMUNDO SILVEIRA é médico e escritor. Durante onze anos foi membro do Conselho Editorial da Revista FEMINA, onde publicou artigos científicos. Tem também trabalhos publicados em outras revistas e livros médicos. Suas atividades na literatura convencional tiveram início com o advento da Internet. É membro da SOBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores). Em 2010 ganhou o Prêmio Literário Para Autores Cearenses, com o livro de contos e crônicas: “Louca Uma Ova”. Em 2011 recebeu o Prêmio Nacional de Conto e Poesia “Correio das Artes 60 Anos”, promovido pelo governo da Paraíba, com o livro de contos “Lagartas-de-Vidro”. Foi um dos contemplados com a Bolsa FUNARTE de Criação Literária – 2010, com o livro “Medicina Crônica”. Com esta obra venceu o “Concurso Literário de Fortaleza”, no ano de 2012.