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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

POR: FÁTIMA AZEVEDO - DE ENTRELINHAS E PEDRINHAS NO LAGO

                           
Dra. Fátima Azevêdo - Médica e Membro da Sobrames-CE

 DE ENTRELINHAS E PEDRINHAS NO LAGO

            Uma carta para um jovem médico...Que responsabilidade imensa essa incumbência que me foi dada pelo colega e amigo professor Álvaro Madeiro Leite. Principalmente depois do belíssimo livro organizado por ele e pelo outro colega e amigo, professor João Macedo. Por onde começar? O que e como dizer palavras a um jovem médico para me fazer entender, torcendo para que essas minhas palavras encontrem eco no coração desse jovem colega.

            Vou começar falando das coisas mais simples da vida. Porque um médico, ao contrário do que muitos possam pensar, é um ser humano igual a qualquer outro. Tem alegrias, tristezas, sonhos, decepções, medo, coragem, certezas e incertezas, dor de dente, dá espirros, adoece, tem argueiro nos olhos, derrama café na roupa, tem fome, sede, cansaço, sono, ama, desama, se apaixona, desapaixona, enfim um médico não passa de um ser humano que escolheu (espera-se que tenha sido uma escolha e não uma imposição) cuidar da saúde física, mental e espiritual de um alguém a quem se deu o nome de paciente. Digo cuidar da saúde física, mental e espiritual porque se a saúde física for bem cuidada e forem esquecidas as outras duas, a manutenção da primeira vai ser muito difícil, porque uma depende da outra.

            Falando ainda do meu ponto de vista altamente pessoal do que eu entendo por médico, médico é um ser humano que antes de tudo tem que saber sentir. Assim como o artista, o médico deveria ter a sensibilidade aguçada, os sentimentos fluidos e a habilidade de ler além das palavras ditas. O médico deveria desenvolver a habilidade de ler as palavras não ditas. Ler o que está nas entrelinhas, assim como Clarice Lispector tanto nos convida a fazer. Deveria aprender a linguagem do coração antes mesmo de aprender a palpar um abdome, auscultar um pulmão ou solicitar um exame de imagem ultra especializado. Para isso deveria procurar ler nos intervalos, alguns autores. Em especial os que escrevem sobre a alma humana. Existem tantos, mas eu adoraria saber que você, meu jovem colega, leu ou está lendo um pouco de Clarice.
            Para começar, um médico deveria também ter os sentidos à flor da pele. Digo isso porque penso que ter os sentidos à flor da pele ajuda a conectar o nosso próprio eu com a vida, com a própria natureza. Olhar os pássaros, se maravilhar com um filhote em um ninho, ter tempo para prestar atenção aos barulhos do alvorecer e do anoitecer, parar um pouco para ouvir os sons da natureza, um riacho a correr, prestar atenção às flores, às folhas caídas, olhar o tronco de uma velha árvore, os galhos secos que um dia foram verdes...todo esse olhar curioso, atento, sensível e amoroso ajuda-nos a perceber a real dimensão da vida.

            Vou falando e não me apresentei a vocês. Sou médica formada pela UFC, com residência e mestrado em Genética pela FMRP-USP. Trabalho como docente da FAMED-UFC desde 1985 e durante todos esses anos sempre achei que faltava alguma coisa muito importante no currículo do ensino médico mas quando  jovem, ainda acadêmica, eu não sabia muito bem definir o que era. No entanto, desde os tempos de estudante eu tinha plena consciência que escutar o paciente lhe prestando atenção, tocar nesse paciente, perguntar por sua vida além da doença, olhar em seus olhos, ter tempo para ouvi-lo, fazia uma enorme diferença. Não apenas para ele o meu paciente, mas para mim também.  Então uma das coisas que eu quero e preciso falar para você meu jovem colega, é que os diplomas são realmente importantes, não há como negar. As especializações, os mestrados e doutorados, as pesquisas, os trabalhos publicados, são sim de grande importância para a formação do profissional e enriquecem seu currículo. Mas, toda essa bagagem de conhecimento sem a sensibilidade necessária ao exercício da profissão, sem  a empatia, sem a compaixão, sem o amor verdadeiro no coração, sem a paixão pelo que faz e pelo outro, a relação médico x paciente e médico consigo mesmo não se dá satisfatoriamente. Vai sempre ficar um vazio, um abismo, entre o nosso paciente e nós mesmos. Um vazio e um abismo às vezes com sérias conseqüências tanto para quem nos procura precisando de nossos cuidados, como para nós mesmos. O ser humano que procura atendimento médico, na maioria das vezes já vem fragilizado, amedrontado, massacrado muitas vezes por alguns atendimentos profissionais insatisfatórios, incompletos e que por vezes o deixaram mais morto do que vivo. Não digo que são todos assim. Existem as exceções. As inúmeras e benditas exceções.
            Vou lhe contar um caso que aconteceu com a avó de um de meus pacientes. Creio que você jamais esquecerá e poderá até questionar a veracidade desse relato de tão surreal que parece. Mas creia, é a pura verdade. Os nomes que citarei são fictícios, mas os personagens são bem reais.

            Dona Joaquina entrou no consultório de um determinado colega e
            --Minha senhora, qual o motivo de sua consulta? (perguntou o médico sentado à sua mesa, fazendo um lanche sem ao menos levantar a mão para cumprimentá-la e sem chamá-la pelo próprio nome).

            --Doutor são os meus pés que estão doendo bastante e quando ando, sinto muitas dores (Dona Joaquina tem joanetes em ambos os pés há vários anos e agora aos 70 anos, o problema se intensificou).

            --Levante para eu ver  (disse o doutor, ainda sentado em sua cadeira).
Dona Joaquina prontamente levantou-se e apontou para seus pés.

            --Minha senhora, não posso fazer nada, a senhora já veio prá mim aleijada.

            Consulta terminada, sai Dona Joaquina do consultório com lágrimas nos olhos, depois de atendimento tão desastroso e por que não dizer, desumano. E saiba que essa senhora foi atendida em dia e hora marcada.

            Vamos refletir...Imagine que Dona Joaquina fosse pessoa amiga desse referido médico, o atendimento teria sido o mesmo?! E se Dona Joaquina fosse avó desse referido profissional, ele gostaria de saber que ela havia sido atendida assim?!  Então, a reflexão é para que o médico lembre que sempre que tiver um paciente à sua frente, para ser atendido por ele, que o médico veja naquela pessoa, um familiar seu. Alguém que poderia ser seu pai, sua mãe, seu filho, seu irmão ou até mesmo você. Desse modo seria bem difícil ou quase impossível fazer um mau atendimento. Este é um exercício que eu aconselho o jovem médico a realizar,  caso ele ainda não traga consigo esse comportamento de forma natural. Aprender e repetir bons exemplos é fácil, mas analisar um mau atendimento, criticá-lo e mais tarde cuidar para não repeti-lo, é tarefa merecedora de toda a atenção.

            Os anos passam, o ardor e a paixão dos primeiros anos de formado podem arrefecer. Isso não deveria ocorrer mas pode acontecer sim. Exercer bem a medicina exige esforço, comprometimento, desprendimento, amor, paixão e interesse, dentre muitos outros pré-requisitos. Exercer bem a medicina é como ter casado com a paixão de sua vida e ao longo dos anos, ver essa pessoa envelhecer, criar rugas, ficar às vezes de mau humor, ficar cansada e mesmo assim, com toda a rotina desumana, como são todas as rotinas, você se manter amoroso, dedicado, criativo e apaixonado. Porque a cada dia o médico tem que se reinventar, tem que se recriar, tem que buscar maneiras de se manter vivo, alegre e apaixonado pelo que faz, independente de qualquer adversidade, independente das dificuldades que possa encontrar para desenvolver suas habilidades profissionais e humanísticas. O médico precisa se encontrar consigo mesmo e achar maneiras de chegar o mais próximo do que chamamos de autoconhecimento. Chegar o mais próximo de sua alma, pois o paciente, as pessoas doentes, precisam de médicos que possam entender suas doenças, tratar seus problemas médicos e acompanhá-las durante o processo da doença. E para fazer esse percurso o médico precisa se preparar, se cuidar, se conhecer, se gostar e gostar muito do outro e do que faz.

            Percebo que apesar de todas as descobertas científicas e de todo o aparato tecnológico moderno para dar diagnósticos os mais raros possíveis, parece que nós, os médicos, tememos nos aproximar dos pacientes. E talvez essa aproximação do paciente é que faça toda a diferença na nossa satisfação enquanto profissionais de saúde e na satisfação das pessoas que atendemos enquanto pacientes. E esse temor de se aproximar de nosso paciente, talvez tenha a ver com o nosso despreparo emocional e humanístico ao longo de décadas e décadas de foco apenas no ensino da ciência esquecendo do ensino e do saber humanístico que é inerente à formação do médico.

            Lendo Gregório Marañon, ele nos aponta para as cinco fontes do saber médico que segundo ele, são:
            1. a clínica, ou seja, o conhecimento da realidade do paciente
            2. a anatomia patológica
            3. a fisiologia tanto clínica quanto experimental
            4. a etiologia
            5. a literatura, a arte e a experiência extra-médica de vida (tão importante quanto as outras fontes). E Marañon  ainda nos diz mais: “quando o médico vê o enfermo como o homem que ele é, e não apenas só como o estômago ou a supra renal que estão alteradas, por necessidade tem que ter os olhos de especialista em vida humana, e estes são junto aos olhos dos psicólogos de profissão, de pensadores e de artistas”.

            Se você caro colega, se der ao trabalho de confrontar  a carga horária de seu curso de graduação entre disciplinas científicas e atividades artísticas, verá muito provavelmente o resultado hilário destinado às artes e literatura, partes tão importantes na formação médica que deveriam ser resgatas de alguma forma e o mais rapidamente possível já que possibilitam o desenvolvimento de habilidades tão necessárias ao exercício da nossa profissão.

            E eu confesso que tenho um sonho. Sonho com o dia em que nós médicos que nos dedicamos às questões de arte e literatura além das questões científicas, não sejamos mais vistos como seres estranhos, seres diferentes. Eu sonho com o dia em que façam parte de todo e qualquer atendimento médico, seja na periferia ou nos bairros nobres da nossa terra, o abraço amigo, o aperto de mão, a escuta atenta, o celular desligado e os olhos nos olhos.

            E para você meu jovem colega, eu deixo a minha esperança de que essas palavras saídas do meu coração de quase 30 anos de formada, possam habitar o seu e assim como pedrinhas jogadas em um lago, se propagar docemente.

                                                Com meu abraço fraterno,
                                                         Fátima Azevêdo



(publicado na Rev.Saúde Criança Adolesc., 3(1): 104-106 Jan/Jun;2011)

4 comentários:

  1. Parabéns, Fátima! Belo texto! Vou citar aqui uma frase do Dr. Raimundo Barbosa Barros, cardiologista cearense, agraciado recentemente com a comenda do Sindicato Médico do Ceará 2013. Em sua fala de agradecimento ele disse: "Chegar à doença é fácil, difícil é chegar ao doente". abraço ana margarida

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  2. Muito obrigada Ana Margarida!
    Bela citação do Dr Raimundo Barbosa Barros.
    Bom saber que não estamos sós.
    Forte abraço,
    Fátima Azevêdo

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  3. Querida Fátima,
    Sua reflexão foi leve, precisa e, agora na maturidade, tenho feito reflexões sobre o ser médico. A humanização ainda se encontra muito no papel e pouco no coração. Enquanto nós não seguirmos o preceito de fazer ao outro o que gostaríamos que nos fizessem, este mergulho cordial não acontecerá. O tempo que hoje é mais célere acaba sendo usado como desculpa. Mas um sorriso não leva mais que um segundo para acontecer. Por vezes, não falta competência, falta apenas cordialidade...

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  4. Celina querida,
    Você está coberta de razão. Como você bem disse: "Enquanto nós não seguirmos o preceito de fazer ao outro o que gostaríamos que nos fizessem", como bem está posto no Evangelho, essa humanização não terá como se concretizar. Me pergunto com frequência, por que será tão difícil seguir este preceito...

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