L. A. Fernandes Soares
O
meu ser espírito gosta de regressar ao pretérito, adora voltar no tempo e,
relembrar com amável carinho aqueles cenários, imagens e acontecimentos que
jamais fogem do computador da memória. Apesar de
não me considerar, nem mesmo, um regular memorialista, lembro das belas fases
da minha infância virgem e feliz. Pobre, mas alegre. Humilde, mas sincera.
Simples, mas espontânea e muito natural, principalmente com a sensação pura de
inocência.
Na
noite que passou, depois dos cumprimentos um pouco concentrado vendo, sem muita
obsessão um programa da madrugada, vi um trem de verdade apitando como
integrante de uma bela propaganda.
Então
regressei ao passado. Lembrei-me que no ano de 1948, meus pais moravam no interior
do Rio Grande do Sul, em uma chácara, local que meu pai criava um plantel de
vacas leiteiras que produziam a nossa sobrevivência. Um tambor de leite simples
e restrito.
Esse
pequeno estabelecimento ficava à beira de um rio de água doce denominado Imbaá,
que no verão nos servia de bela e tentadora piscina. Era coberto por uma extensa mata nativa que o
envolvia no percurso que passava em nosso campo. Depois tinha início uma
destacada coxilha que mais distante parecia-nos que se abraçava com a
extremidade inferior do horizonte.
Pois,
descendo dessa união colina-céu, vinha à estrada de ferro que tinha início na
capital a 600 quilômetros e passava a uns cinco da casa da chácara. Quando a
estrada fazia a curva para seguir para a estação final na cidade de Uruguaiana,
tinha uma “parada” onde o trem só estancava sua marcha caso tivesse algum
passageiro para embarcar ou desembarcar. Era uma parada muito rápida. Esse era
o ponto geográfico mais perto da chácara.
O
trem era conhecido por trem de tabela, pelo horário certo de chegar e sair ou
de trem de passageiro, ou trem da linha, pois, só conduzia pessoas e raramente
carga. Tinham outros trens que conduziam cargas e tropas de bois para os
saladeiros da fronteira.
O
trem partia da capital as 20h45 e chega à cidade da fronteira por volta das
21:00 horas do dia seguinte. Seu horário de passar pela parada denominada Xisto
Pereira era por volta das 20h20 horas.
Nesse
horário no verão da campanha já era noite escura. Já tínhamos jantado, a
querida e doce mãezinha com a irmã mais velha já tinham lavado a louça. Os pais
e os quatro filhos sentavam-se do lado de fora da casa de madeira e zinco, sem
forro, extremamente quente, sem luz elétrica e sem nenhum tipo de ventilação
artificial para apanhar a brisa da noite que soprava dos campos abertos, sempre
fresca e perfumada pelo aroma das flores silvestres e também do jasmim que
mamãe cultivava com muita habilidade.
O
papai preparava o chimarrão e sentado junto à mãe ia sevando-o para ambos
enquanto nós brincávamos sentados em pelegos de pele de ovelha no chão próximo
deles. Mamãe e papai conversavam. Nunca soube o que comentavam. Papai, que ia a
cidade todos os dias e durante a repartição do leite de litro em litro para os
seus velhos fregueses conversava com muitas pessoas, sempre tinha alguma
novidade para relatar. Era o jornal oral, pois, rádio também não existia. As
duas gurias brincavam de boneca e nós, os dois guris, brincávamos imitando o
trem. Dentro da noite sempre muito escura, pois não acendiam nem os lampiões
nesse período para economizar querosene. Tínhamos apenas a luz das estrelas que
refletiam rompendo os espaços entre o vão das folhas dos cinamomos e conseguiam
projetar algum clarão, o suficiente para nos vermos e podermos brincar.
O
céu na campanha à noite é normalmente exuberante com um punhado de estrelas que
servem de verdadeiro teto, dos mais variados tamanhos com intensa luminosidade
e muitos painéis com diferentes e exóticos desenhos. Trata-se de um cenário
natural admirável. Em algumas noites de lua cheia, então, a noite se tornava
verdadeiro dia pela claridade da luz da lua. Essa claridade intensa só era
notada até poucos metros depois. À distância, a sombra da noite deixava tudo
escurecido.
Quando o velho relógio de parede, que ficava
na sala, badalava 20h15, pois seu pêndulo que nunca parava permitia que o cuco
cantasse, estava na hora do Trem de Passageiro passar próximo da chácara. Nesse
momento toda a família se virava para o horizonte na comunhão de afeto da
coxilha e o céu, pois logo ouviríamos o saudoso apito do trem que era
estridente dentro do silêncio da noite e resplandecia com muita intensidade.
Era o sinal sonoro para avisar o chefe da estaçãozinha da parada que estava
chegando.
Nesse instante bastava olharmos para o
horizonte, bem depois da mata virgem e do rio Imbaá, que veríamos com muita
nitidez uma corrente de luz e fogo, semelhante a um colar de brilhante que
corria serra abaixo em nossa direção.
A
máquina movida a carvão mineral incandescente tornava-se verdadeira tocha de
fogo e era possível vermos as faíscas que voavam impulsionadas pelo vento
provocado pelo deslocamento da composição. Os vagões, com todas as luzes acesas,
pareciam uma centopéia iluminada ou um cometa correndo livremente pelos trilhos
descendo do alto da montanha.
À
medida que se aproximava da estação da parada, o visual era mais nítido e o
apito era repetido insistentemente, com a finalidade de espantar as reses
bovinas e as ovelhas que dormiam ao largo da estrada de ferro e avisar os pouco
moradores das casas isoladas que estava chegando.
O
contato das rodas de ferro do trem com os trilhos, também de ferro e aço,
produzia um ruído muito típico que era ouvido dentro da noite a vários
quilômetros. A água do rio ajudava na propagação desse barulho e do próprio
apito repetitivo e por vezes melancólico, pois, seu som sempre dava a ideia de
despedida, de adeus e saudade.
Esse
conjunto de sons típicos hoje resplandece em meus ouvidos como um hino de
saudade e belas lembranças da minha infância, dos dias felizes que não voltam
mais, como diz o poeta maranhense Gonçalves Dias. O retrato do trem espargindo
fogo no espaço e o odor do carvão persistem como símbolos de um trajeto de vida
grafado para sempre em meu sentimento e nas minhas retinas.
Dessa
imagem nunca esquecida é que surgiu a ideia do trenzinho. Naqueles tempos guri
não falava muito com os adultos. Muitas noites, ali ficávamos admirando o céu
na espera do trem. Uma noite a mãezinha, após juntar por vários meses as
pequenas caixas de fósforos da marca Fiat-Lux que haviam sido consumidos os
pauzinhos para acender o fogo do fogão a lenha e os lampiões nos ofereceu a
grande sugestão. Juntamente com o papai, abriram todas as caixas vazias sobre
uma mesa e foram unindo uma na outra através da gavetinha que servia de recipiente
para os palitos de fósforos formando um cordel. As caixas enfileiradas, unidas
em média de dez, uma na outra, forjavam um trem com dez vagões. Na primeira
caixa encaixavam uma gavetinha em pé que significava a máquina da composição. O
trem estava pronto. Esse era um brinquedo para os guris.
Logo
aprendemos a montar e desmontar o conjunto de caixas. Acabamos fazendo trens
menores para que o pátio imaginário da estação do trem, que logo construímos
sobre os pelegos, desse a ideia de grande movimento. Depois criamos o trem de
carga. Juntávamos frutas do cinamomo e enchíamos as gavetinhas intermediárias
transformando-as em vagão de carga.
Por muitas noites, não sei por quantos anos,
foram o nosso brinquedo preferido, predileto e antes do trem de verdade apitar
sobre o lombo da coxilha, o nosso já estava descendo o montinho de areia que
passamos a utilizar para imitá-lo. Depois cada guri ganhou uma caixa de sapato
vazia para acondicionar o trem quando não estava em uso. O nosso trenzinho de
caixa do fósforo deixava de chegar ao destino no longo período de inverno, pela
intensidade do frio e das geadas repetitivas que tingiam de branco as coxilhas
e canhadas de nossos campos nativos.
Como
todos os guris de todos os tempos, nós não deixamos de criar algumas situações
pouco aprovadas pelos pais, aliás, que eram sempre praticadas as escondidas. Também
fazíamos nossas “artes”, brincadeiras, às vezes perigosas com risco para a
nossa própria integridade. Certo dia, praticamos uma arte perigosa brincando
com fogo. Em todos os tempos, sempre tivemos respeito à hierarquia. Acredito
que a ideia fora minha, já que era o mais velho e meu irmão, muito humilde e
querido, seguia os bons e maus exemplos dos mais velhos, por ser obediente e
muito respeitador.
Escondidos
no galpão longe da mamãe, resolvemos tentar imitar o fogo e as faíscas que eram
lançadas no espaço pelo trem da linha ou passageiro. Montamos um trem com as
caixas e encravamos no compartimento, que denominávamos de máquina, alguns
palitos de fósforo furtados da caixa que o papai utilizava para acender o
lampião pela madrugada quando iniciava a ordenha das vacas iniciada sempre às
quatro horas. Em seguida, lasquei um pau de fósforo na caixa acendendo-o e
encostei nos paus que estavam fixos em nossa máquina imaginária.Vejam o que
aconteceu!!
As
laterais das caixas de fósforos são revestidas por uma fina camada de areia e
pó de vidro formando uma crosta áspera que em contato com o palito, a faísca
gerada queima o clorato de potássio, que libera uma grande quantidade de
oxigênio. Esse oxigênio reage com a parafina que reveste o palito. Essa
combinação gera uma chama que consome a madeira do palito por mais ou menos 10
segundos.
Os
fósforos se incendiaram de imediato e o fogo se alastrou por todo o conjunto de
caixas enfileiradas com muita intensidade. Ocorreu uma combustão seguida de uma
explosão que chegou a chamuscar os meus cabelos e sapecar a mão. Nada grave.
Mas o susto foi tremendo!
Resultado:
todo o nosso trem virou cinza em segundos e para nossa felicidade, essa arte
havia sido praticada com as caixas no chão puro de terra. Poderíamos ter
incendiado o galpão que era baixo e quinchado de capim canil seco. Lógico que nossos
queridos e amáveis pais partiram sem nunca terem tomado conhecimento de mais
essa arte. Nunca mais brincamos com fogo. Como os guris eram unidos, nunca mais
falaram no assunto. Travessuras da infância que, apesar de muito virginal,
sadia e pobre, aconteceram.
E neste momento do ano de 2013, as sublimes
lembranças do ano de 1948 regressaram a minha memória e os tempos se
confundiram no bailado dos sentimentos em festa natalina e os olhos olharam
para o alto da coxilha dos sonhos e viram o trenzinho descendo e os tímpanos
ouviram o retumbar do som saudoso do apito do trem... Mesmo estando no átimo do
tempo retido, no interior de um apartamento no nono andar...
O
passado é perene basta provocarmos os sentidos que aparecerá....
Neste
último Natal, o trenzinho de caixa de fósforos que imitava o trem de passageiro,
correu apitando pelos trilhos dos meus sentimentos, sensibilizando os painéis
da saudade que responderam através de pingos de lágrimas.
Legendas: Fig. 01 Velha estação
abandonada
Fig. 02 - Antigo vagão de passageiro
Fig. 01 - O trenzinho de caixa de
fósforos
Lindo texto. Parabéns!
ResponderExcluirana margarida
Texto de memórias de uma infância saudável e feliz.
ResponderExcluirMe fez voltar à minha.Também cheia de doces lembranças.
Parabéns!
Fátima Azevêdo
"Bravo! Soares. Gostei de ver pulsar junto à Sobrames-CE este seu
ResponderExcluirpendor memorialista gaúcho. Trata-se de uma belíssima contribuição que
fará a todos nós relembrar momentos de nossa criancice. A próxima
aproximação pelo qual estou torcendo e já sentindo na fusão Norte-Sul,
Leste-Oeste da Sobrames numa única e produtiva entidade nacional com
as finalidades muito bem definidas nos seus primeiros estatutos em
vernáculo escorreito só pode alegrar o coração dos bem intencionados
que pretendem fazer crescer cada vez mais a participação ativa dos
nossos companheiros congregando nosso ideais artísticos-literários.
William Moffitt Harris"