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sábado, 9 de fevereiro de 2013

POR MARCELO GURGEL - O BRONCO OU O SORRISO 1001


Dr. Marcelo Gurgel - Médico e Membro da SOBRAMES-CE


O BRONCO OU O SORRISO 1001
 Publicado In: SOBRAMES – CEARÁ. Ressonâncias literárias. Fortaleza: Expressão, 2009. 224p. p.164-5.
No Bloco Didático, disposto no andar superior da Biblioteca Setorial do Centro de Ciências da Saúde, da UFC, reinava, nos anos setenta, quase soberanamente, um bedel encarregado da manutenção das salas de aula e de prover os equipamentos audiovisuais aos professores que iam ministrar aulas naquele recinto.
Esse funcionário, nascido na Colônia Antônio Diogo, era um tipo robusto, com físico muito assemelhado ao do personagem “Bronco”, imortalizado pelo comediante Ronald Golias, do Programa de TV “A Família Trapo”, e muito chegado a fazer brincadeiras e gozações, nos moldes do seu digamos “quase aparentado” artista.
Às vezes, ele adentrava, de súbito, na sala de aula e provocava os alunos presentes com um dito engraçado e fartamente audível, ao tempo em que exibia um largo sorriso, do tipo “1001”, expondo os seus caninos superiores, com um vasto hiato decorrente da exodontia dos incisivos mediais e laterais, o que servia para “quebrar” as tensões nos momentos que antecediam a aplicação de provas.
Devido à reclamação de certos professores, que o consideravam inconveniente, mas à revelia dos alunos, ele foi transferido para o Departamento de Fisiologia e Farmacologia, tornando-se, oficiosamente, o grande captador de caninos vadios (no caso, os quadrúpedes e não os seus dentes), capturados nos arrebaldes do Porangabuçu, para as aulas práticas e experimentos desse departamento.
Dizia-se que a sua excepcional performance estava atrelada à técnica que desenvolvera: esfregava os genitais de uma cadela no cio em suas calças e punha-se a caminhar pelas ruas adjacentes, atraindo, com o seu ardil, um bom número de cães, que, uma vez enlaçados, eram conduzidos ao canil do Curso de Medicina, e, posteriormente, imolados em prol da ciência e do ensino médicos.
O dito sósia do “Golias” permaneceu nesse serviço até quando, em um entrevero com um importante docente, revelou a sua força física ao erguer, desafiando a Lei da Gravidade, o brilhante mestre pelas “bitacas”, fazendo-o subir às alturas, e sendo, por tal desacato, punido com o remanejamento para trabalhar no campus do Pici.
Sua transferência diminuiu a “graça” no Campus do Porangabuçu. Com isso, quem saiu perdendo, em parte, foi o alunado, privado da alegria do bedel que teve a ousadia, não de parecer com o “Golias” da TV Record, mas de querer ser um Davi ao contrário, banguela, e sem a funda que caracterizou o atirador de pedras no descomunal antagonista bíblico.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Sobramista/CE e membro da ACM

POR CELINA CÔRTE - MORTES PELO ÁLCOOL



Dra. Celina Côrte Pinheiro - Médica e Presidente da SOBRAMES-CE
 
                                               MORTES PELO ÁLCOOL

Publicado no DN (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE) em 11.03.2012
DEBATES E IDEIAS
 
O Ceará encontra-se em segundo lugar em mortes por alcoolismo, superado apenas por Minas Gerais, de acordo com o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Esta realidade trouxe-me a lembrança de um fato presenciado em remota noite de Natal. Convidados à casa de um amigo para festejarmos a data, assistimos à cena de um pai que oferecia cerveja à filha de apenas dois anos e exultava com a receptividade da criança. "Vejam só como ela gosta de cerveja!" dizia o pai irresponsável.

Relacionamo-nos com bebidas alcoólicas como se fosse uma grande brincadeira, sem perigos reais, posto que lícitas. Sua devastação é poderosa e causa óbitos em diferentes contextos. Afora as mortes decorrentes de doenças do álcool, muitas outras ocorrem no trânsito, por conta do mesmo vilão, sendo notificadas como decorrentes de politraumatismos, traumatismo craniano etc.. A bebida se esconde sob o manto da morte e não aparece nas estatísticas que seriam ainda mais contundentes. Em muitos lares, as bebidas alcoólicas compõem a decoração. Não percebemos que ali pode estar o primeiro convite à iniciação de jovens ainda imaturos. Nas ruas, o acesso fácil às bebidas também contribui bastante com a proliferação de dependentes, embora a lei impeça a venda para menores de 18 anos. Ingenuidade nossa acreditarmos que a burla não ocorra com facilidade. No Ceará, o uso do álcool se inicia cedo entre crianças e jovens. A fiscalização é insuficiente.

Está na hora de revermos os parâmetros familiares e sociais para lançarmos um olhar mais realista e crítico a certas convenções que nos soam naturais. O investimento em políticas públicas sérias com foco na família, na escola e no treinamento de profissionais é urgente. Refletirmos sobre a sociedade em que estamos inseridos, como nos comportamos, nossos hábitos, nossas atitudes e tudo que decorre disso é um bom exercício de cidadania. Muitos adultos jovens, insistentes em combinar álcool e direção, morrem e matam no trânsito, mesmo antes de se tornarem dependentes do álcool!

                                                     Celina Côrte Pinheiro

POR AIRTON FERRO - MÃE RUIVA

Dr. Airton Ferro Marinho - Médico e Membro da SOBRAMES-CE


                                             MÃE- RUIVA

           É natural que cada povo ou cada pessoa cante e saúde o (s) seu(s) heróis; isto já vimos em Homero, em A Ilíada e em a A Odisséia e em Virgílio, na sua Eneida.
           Quando a conheci, já era septuagenária ou octogenária passando pela rua, a uma pequena distância de nossa casa no Ipu. Vestía-se sempre de branco, com saia muito longa, mangas compridas e sapatos da mesma cor. Assim, ficou marcada na minha memória. Portava consigo um guarda- chuva ou guarda-sol; era branca, de pele muito macia, de média estatura, esbelta, com os cabelos encanecidos presos atrás por um cocó e de olhos azuis. É assim que me recordo daquela experiente parteira- heroína da minha querida Ipu. A infatigável  parteira-prática ajudara várias gerações a nascer, através de suas hábeis mãos, agora pregueadas e envelhecidas. Atendia no Ipu e adjacências, ora no sertão, ora na Serra da Ibiapaba e principalmente na região urbana; era mais solicitada que os próprios médicos. Ajudara a nascer centenas e até milhares de crianças. Tinha um grande desvelo pelas parturientes e era carismática. Todas gostavam dela e a chamavam carinhosamente de Mãe-Ruiva.
        Quantos chamados a desoras,  quantas noites insones! Quantas emoções, quantos estresses, quantas viagens a pé e quantas no lombo de cavalos! Muitas vezes, à beira das camas ou das mesas com  uma parturiente de primeiro filho, esperando as contrações uterinas nos partos demorados de 4 a 12 horas  ( nas primigestas e primíparas ), contando as contrações e fazendo toques vaginais para avaliar as dilatações dos colos uterinos  e sua espessura, entre gritos, gemido, choros e desesperos, no exercício devotado de sua profissão, quer nas alcovas, quer nas camarinhas! 
Utilizava somente uma tesoura, fios de algodão (zero), uma bacia, água, sabão e álcool para completar a assepsia. Às vezes nem luvas usava, mas a sua paciência, superava tudo isto. Não sei se usava fórceps de alívio ou se era apanágio dos médicos. Havia no Ipu quase sempre 3 ou 4 médicos.
          Havia um prédio inacabado, onde funcionava a maternidade, ao lado de um Posto de Saúde. Mesmo os médicos quando solicitados, faziam os partos em domicílios. Não havia as chamadas” Casas de Parto”.
         Mãe-Ruiva enfrentava as mais diversas, intempéries, quer na chuva como no sol; não media distância. Mesmo indisposta ela atendia aos chamados, levando consigo um penico para alguma eventualidade. Mãe-Ruiva era uma verdadeira Florence Nightingale, a famosa enfermeira-heroína, inglesa,  a notável ”Lady with the lamp! Que em uma guerra, iluminava o hospital, dando assistência aos enfermos.
       Lembro-me bem que em nossa casa, quando se sentia o cheiro de alfazema e a alcova fechada, era prenúncio de parto e logo ouvíamos o choro do recém-nascido. Era uma alegria total!  Após os serviços do parto era comum enterrar no quintal:  a placenta, o cordão umbilical e alguns outros expurgos. O costuma da época era guardar o coto umbilical, quando,  depois de uma semana a 10 dias, caía espontaneamente e era guardado como relíquia.
                                                                                Airton Ferro

POR CELINA CÔRTE - ARTE MODERNA



Dra. Celina Côrte Pinheiro - Médica e Presidente da SOBRAMES-CE


                                         ARTE MODERNA

  
Se feiúra matasse, Joselindo nem teria nascido. Aliás, para falar a verdade, sequer teria sido concebido. Não que ele fosse deformado ou portador de alguma anomalia congênita. Nada tinha a mais, nem a menos. Era simplesmente feio, muito feio! Magro, compridão, rosto quadrado e escaveirado, dentuço, com olhos assimétricos e escondidos por trás de dois fundos de garrafa, orelhas de abano, sem contar o cabelo ralo e desordenado. O conjunto decepcionava à primeira vista e talvez o nome Joselindo decorresse de uma tentativa frustra de seus pais para disfarçar tanta feiúra. Chegou a receber uma proposta de emprego como espantalho em uma fazenda qualquer da região, o máximo da hostilidade social. Rejeitou-a, naturalmente! O estandarte de Joselindo não era o seu aspecto físico. Sobrepunha-se a isto de maneira elegante. Tinha a alma boa, a auto-estima elevada, era inteligente, bem humorado e captava amigos com facilidade.
Como paixão não avisa, nem mede distância, aproximou-se de Doralice, fina flor de pessegueiro, cheirosa, suave e cobiçada pela maioria dos rapazes do bairro. A moça, como era previsto, não se interessou por ele. Ao contrário, considerou o desejo do rapaz um verdadeiro acinte! Ela se sentia a própria princesa dos contos infantis, contudo não nutria qualquer interesse por sapos encantados. Joselindo, porém, não desistia e seguidamente lançava olhares lânguidos à bela dos seus sonhos.  Insiste daqui, insiste dali e Doralice se esquivando, até certo dia, quando a moça pareceu disposta a ceder às reivindicações afetivas de Joselindo. Propôs conversar com ele na pracinha, ao cair da tarde. O moço acreditou que finalmente seu sonho de amor iria se realizar. Sua mente voou a ponto de se imaginar em trajes de noivo, aguardando a entrada triunfal de Doralice, ladeada por damas de honra bailantes como colibris. Ao se encontrarem, a moça, querendo dar um definitivo fim ao sonho do rapaz, lançou-lhe um olhar profundo e, insensível, falou:
- Joselindo, vou ser absolutamente sincera e honesta com você. Sabe por que não quero namorá-lo? É porque você é ho- rro- ro-so!
Não satisfeita em acentuar cada sílaba, ainda repetiu: - Está entendendo? Ho-rro-ro-so! Não combina comigo!
Joselindo conteve a emoção negativa com muita galhardia. Ergueu um pouco a cabeça, como se desejasse exibir ainda mais a feiúra, coçou uma espinha vaidosa no canto esquerdo do queixo e retrucou:
- Minha linda, sabe qual é o seu grande problema? É a mais pura ignorância... Você não entende nada, ab-so-lu-ta-men-te naaa-da, de arte moderna!
                                                  Celina Côrte