-
Good morning! – cumprimentou-me
o corvo que havia dias seguia-me as caminhadas matinais, voando de árvore em árvore,
no bosque de Loudonville.
-
Good morning! – respondi com
surpresa, mesmo sabendo que os corvos são inteligentes e costumam imitar a voz
humana. Como a pronúncia denunciava a
minha origem estrangeira, o pássaro mostrou-se interessado.
-
Where are you from?
-
Brasil – respondi com a
esperança de alguma referência à minha pátria, ao Pelé, pelo menos.
-
Portugal, Brasil, Moçambique… que
beleza a língua de Camões!
-
Ué! Falas português?
-
Falo e tenho leitura de todas
as línguas que traduziram o maldito poema de Alan Poe. Abono, contudo, as traduções
de Fernando Pessoa e Machado de Assis, foram meus mestres do belo idioma
originário do Lácio.
-
Maldito?! Como podes repudiar um poema famoso
que te imortalizou? Uma verdadeira obra prima, patrimônio cultural da
humanidade!
-
Obra prima, sim, não nego, para os amantes da literatura. Para a minha
ave pessoa saldou a eterna associação com o mistério, com a abominável morte. Uma tristeza para a raça, sem
acrescentar os infortúnios sofridos desde a época da Europa medieval, já tão
crescida. Éramos considerados pelos
franceses os representantes do mal, as almas de padres e freiras perversos, e,
para desonra maior, o diabo, pelos os alemães.
-
Compreendo a tua razão de
vítima, mas o poema é uma obra imortal, uma glória que deves a Poe. Valem as
compensações da vida.
-
Desculpa a minha zanga! Mas não
me conformo com a sacanagem que a humanidade tem feito com a minha biografia, a
compreensão humana não pesou as minhas virtudes – grasnou a ave do admirável
“nevermore” dilatando a garganta.
-
Que sacanagem a ti fez a
humanidade?
-
Parece que não lês a Bíblia? Vejo
que ignoras as minhas ações em favor da vida desde o tempo do dilúvio –
retrucou o inteligente pássaro desapontado.
-
Falas de Noé?
-
Sim, sim, aquele ingrato!
Quando cessou o dilúvio, ordenou-me fazer um inventário se havia terra firme.
Lancei-me da Barca duas vezes à procura do matinho. Voei muito, muito além da
ordem prescrita, sobrevoei longas distâncias. Pra teu governo, cheguei a bater asas na região que viria ser o Ceará, onde nasceria o grande romacista de José de
Alencar.
-
Desculpa-me, mas o catecismo
nos tem relatado apenas a história da pomba,
a venturosa Columbidae que Noé
enviara para a delicada missão, e que retornou com o raminho de oliveira no
bico. Sucesso que dura até hoje. Assim seja!
-
Percebes, agora? Todos os créditos
para a alva pomba, e uma grande injustiça com a negra espécie da Corvidae família. Eu que procedi as
primeiras rondas diluvianas, um verdadeiro voo no escuro, mesmo em claro dia, nem
uma nota de louvor no Gênesis!
-
Por que não protestaste junto a
Noé?
-
Claro que fui ter com ele. Mas
o velho estava bêbado na cobertura da Arca. Relatei o fato para o Cão, seu
filho, o risco de o pai cair nas águas. Cão
subiu apavorado e flagrou o pai com as partes secretas à mostra. Quando acordou
da embriaguês e viu-se em tal estado, Noé
ficou irado com o filho, e cheio de razão, amaldiçoou o neto Canaã, o caçula de Cão, coitado, que nada tinha a ver
com o peixe – e ironiando -, animal que da Arca não carecera. Senti-me vingado,
embora pesaroso com a sorte de Canaã.
-
Tornaste uma ave melhor com a
vingança?
-
Claro que não! Vingança não
traz felicidade a niguém, seria uma espécie de sentimento falso, em estado de empréstimo.
Felicidade é coisa autóctone do coração.
-
Eitaman!
-
O que significa a palavra
“eitaman”? Nem Machado nem Pessoa ma ensinaram – justificava-se o desafeto de
Noé.
-
É gíria! Que os teus ex-mestres
não saibam. Voltemos, pois, ao Poe. Tiveste alguma participação na morte
misteriosa do poeta? – perguntei com cautela, receio de processo.
-
Não, mas o vi agonizando no
banco da praça. Apesar do que dizem a meu respeito, não tive natureza para
assistir ao seu termo até o fim. Também não abri o bico para não facilitar as
investigações policiais sobre a morte do Edgard. E como sabes, o mistério tem
rendido livros e filmes.
-
Para encerrarmos a boa
conversa, gostaria de saber qual é a tua relação com Deus.
-
Excelente! Sou-Lhe eternamente
agradecido pela confiança depositada à minha penosa pessoa, polêmica para os
ignorantes, porém, justificada por Ele. Estão na Bíblia as minhas virtudes em
favor da vida. Deus é o fiador.
-
A que sucesso te referes?
-
Não sabes? Levei pão e carne
para alimentar o profeta Elias no deserto, onde refugiara-se para se livrar da
perseguição de Jezabel, a perversa mulher de Acabe, rei de Israel. Foi uma tarefa
confiada por Deus, podes conferir em Reis.
-
Muito obrigado pelas sábias
informações! E desculpa-me a falta de melhor instrução.
-
Leia a Bíblia, Machado e
Pessoa, tendes tudo para melhorar. Se chegares a compreender Camões, te
consagrarás nas letras. E para terminar, retorno ao princípio, saudando-te com
o nativo idioma de John Steinbeck: “take care”!
Sebastião
Diógenes.
Loudonville, 19 de fevereiro de 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário