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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

POR CELINA CÔRTE - CELINO



Dra. Celina Côrte Pinheiro - Médica e Presidente da SOBRAMES-CE

CELINO
 
Encontrava-me ainda ligada com unhas e sem dentes a um invólucro aquecido, espiando através da minha primeira janela do mundo e já podia divisar a discussão que se travava a meu respeito. Nasci franzina, com mãos magras e dedos longos, comparados imediatamente aos pés de uma galinha. Mau começo, sem contar aquela respiração rápida, arquejante, acompanhada de um gemido, Apgar-mente nada recomendável.

         À minha presença, a discussão se acirrou. Eu deveria receber um nome marcante já que, com aquele aspecto tão depauperado, muito deixava a desejar. Além disso, meu nome deveria obrigatoriamente se iniciar com a letra C, não porque isso tivesse algo a ver com a minha cara um tanto quanto estranha. Na verdade, eu iria compor mais um Cê na família.

         A enfremeira (mistura de freira com enfermeira) tentando ajudar na definição de meu nome, perguntou à minha mãe:

- Que santo ela trouxe?

Minha mãe, ainda surpresa comigo, um verdadeiro projeto de gente, não entendeu a pergunta e devolveu:

- Nenhum!!

A freira só conseguiu esboçar um que pena!, benzeu-se e saiu. Para piorar ainda mais minha condição feminina, nascera também herege! Nenhum santo para me acompanhar... Nem à distância! Um caos!

Seguiram-se mil e uma sugestões relativas ao meu futuro nome: Cristina, Carolina, Catarina, Creolina, Crisantina, Cleide, Clélia, Carmem e finalmente Celina, em homenagem a velho amigo de meu tio, um tal Celino. Este último nome foi rejeitado por oito votos contra um e minha mãe, tomando a palavra, decretou que eu seria Carmem Sílvia. Respirei aliviada, pois meu destino poderia ter sido pior.

Meu pai saiu para o cartório, empunhando o nome sugerido, cuidadosamente anotado em um papelzinho. O problema foi ele haver cedido ao impulso bastante compreensível de arriscar a sorte no jogo do bicho, com o número do quarto onde minha mãe se encontrava. Caso o resultado fosse favorável, a grana ajudaria a reduzir as despesas hospitalares geradas com a minha chegada. Carmem Sílvia virou aposta, por trás de um papelucho com uma centena, do primeiro ao quinto. Meu pai, no cartório, por mais que tentasse, não conseguiu se recordar do nome proposto para mim, cuidadosamente selecionado dentre aquela enxurrada antroponímica. Sem titubear, registrou o primeiro que lhe veio à mente: Celina. Minha mãe, desde o princípio rejeitou tal escolha, passando a me classificar como Celi.

 Graças, porém, ao meu verdadeiro nome, cresci às voltas com o assédio do homenageado Celino, um senhor já apanhado nos anos, gorducho e de bochechas rosadas que prometia se casar comigo quando eu crescesse. Apesar de nossa diferença de idade em quase sessenta anos, eu acreditava e me apavorava na inocência dos meus cinco ou seis anos. Como eu o detestava! Felizmente, sua presença era eventual em minha vida.

Cresci, perdi um pouco daquele ar desnutrido e me assumi como Celina, com prazer e orgulho. O velho Celino já desaparecera e eu não tinha mais por que temer. Pelo menos é o que imaginava até participar de uma coletânea onde eu era a única presença feminina, junto a um exército masculino. Por conta de uma falha gráfica, nomearam-me Celino, em uma desaforada reminiscência ao meu passado conflituoso.

E agora lhes pergunto: - Será que a alma do velho Celino continua me atentando? Que Deus o tenha! 

                                                                             Celina Côrte

POR WILLIAM HARRIS - A MORDIDA DO CACHORRO LOUCO



A mordida do cachorro louco [1]
William Moffitt Harris [2]


Quando estive no Rio de Janeiro, em 1986, para participar do Congresso de Pediatria Comunitária, eu me vi diante de uma diária proibitiva no Hotel Glória e resolvi procurar algum lugar lá por perto em condições mais modestas. Indicaram-me um hotel nas imediações, cujo nome, no momento, não me recordo. Era numa rua estreita, a duas ou três quadras da Praia do Flamengo com uma calçada larga, talvez até mesmo um calçadão. Já estava escurecendo.

Ao me aproximar do balcão, o recepcionista foi logo perguntando:

O senhor vai querer companhia para esta noite?

Expliquei que procurava um quarto ou apartamento para deixar minhas coisas já que viera participar de um congresso no Glória. Estava sozinho e assim  queria continuar. Ele me olhou de uma forma meio esquisita e continuou:

É melhor o senhor ficar aí no apartamento da frente, porque lá em cima, o prédio inteiro treme durante a noite.

Fiquei pensando: será que os alicerces não são firmes e o trânsito da avenida se faz sentir ou será que no Rio existiriam abalos sísmicos quase imperceptíveis a não ser no alto dos edifícios, como no espigão da Av. Paulista em São Paulo (Paraíso, Avenida Paulista, Av. Dr. Arnaldo e Av. Alfonso Bovero)?

Olhei o apartamento e tudo parecia em ordem. Por via das dúvidas, fechei as venezianas e baixei as duas folhas da janela em guilhotina, que dava para a calçada. Guardei minhas coisas, apanhei a pasta do evento, larguei a chave na portaria e fui para o Glória.

Havia viajado boa parte do dia para chegar ao Rio e estava com sono e cansado. Assisti à abertura do evento e voltei, após comer alguma coisinha. Tomei um banho e fui dormir. Era uma noite quente.

Lá pelas onze e meia da noite acordei sufocado. Um espasmo de glote me atormentava. Não conseguia respirar e fiquei desesperado. Abri a porta e fui parar no meio da calçada. Apoiei-me num poste e de relance percebi que minhas unhas arroxeavam. Não conseguia respirar e estava tudo escurecendo.

Não era a primeira vez que eu havia passado por isto, em consequência da fumaça de cigarro, e eu sabia que não podia perder a calma. Respirando superficialmente, sem forçar a garganta, devagarzinho tudo se resolveria.

Na calçada havia umas dez pessoas sentadas às mesas de ferro, tomando cerveja e fumando. Pela janela do meu apartamento entrava direto a fumaça dos rapazes que estavam defronte à mesma.

Um senhor mais idoso, bastante preocupado, aproximou-se e fez duas perguntas, que jamais esquecerei pela sua sinceridade, sua inocência e seu impacto.

O senhor foi mordido por um cachorro louco? O senhor quer que chamemos uma ambulância?

Dei sinal para que não se preocupasse e comecei a rir pelas circunstâncias. Fui melhorando aos poucos e daí a uns dez minutos já havia voltado ao restitutio ad integrum.

Voltei ao meu quarto e fui dormir.

No dia seguinte, num dos intervalos, tomando um cafezinho com outros congressistas, perguntei inocentemente ao Paulo César, um amigo novo que havia ganho havia alguns anos no Rio, se abalos sísmicos no Rio ocorriam com frequência. Contei a história do hotel. A turma caiu na gargalhada. Disseram-me que aquela área era a da luz vermelha e que o hotel era de alta rotatividade. 3

Paulo César fez-me apanhar minhas coisas e levou-me para a sua casa.

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1-​ Capítulo do livro do autor Era Uma Vez Um Menino Travesso. São Paulo: Legnar Editora, 2004. (esgotado) Apresentado nas seguintes tertúlias literárias do Movimento Médico Paulista do Cafezinho Literário – MMCL; 90ª em 13/12/08 em Sto. André, na 104ª em 20/06/09 em Piracicaba, na 106ª em 15/08/09 em S. Caetano do Sul, na 107ª em 19/08/09 em Sorocaba e na 117ª em 05/12/09 em Taubaté. Apresentado também na reunião da Academia em Poesia da Academia Vicentina de Letras, Artes e Ofícios “Frei Gaspar da Madre de Deus” em 18/10/09 no Clube Elos em S. Vicente – SP.



2- ​(Dados atualizados) Pediatra Sanitarista. Prof. Dr. (aposentado) da Faculdade de Saúde Pública – USP. Fundador (05/05/05) e Coordenador Estadual do Movimento Médico Paulista do Cafezinho Literário – MMCL. Membro Titular ativo da Associação Brasileira de Médicos Escritores – SOBRAMES desde 2003, nível central SOBRAMES-BR, níveis regionais SOBRAMES-PE, SOBRAMES-RS. Membro Honorário e Titular da SOBRAMES-CE. Dissidente e separatista da SOBRAMES-SP. Membro Correspondente da Academia Maceioense de Letras. Sócio Titular da Associação Paulista de Medicina e Associado da Associação dos Médicos de Santos. Membro Associado da Academia Vicentina de Letras, Artes e Ofícios “Frei Gaspar da Madre de Deus” de S. Vicente – SP. “Padrinho” do MLSS - Movimento Literário Saberes e Sabores de S. Gonçalo do Sapucaí – MG.


3Dr. Paulo César de Almeida Mattos, assessor há mais de vinte anos da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro e professor associado da Fiocruz, Dr. Jeiel Correa Ferreira de Souza (RIP) médico e pastor da Igreja Batista, também do Rio, Dr. José Carlos Piccolotto, de Campinas-SP e o autor da presente crônica, com mais meia dúzia de colegas refundaram a ABRASE – Associação Brasileira de Saúde Escolar em 1984 que promoveu seu primeiro congresso em Vitória-ES em 1988.





POR SEBASTIÃO DIÓGENES - ZUMBIDOS



Dr. Sebastião Diógenes Pinheiro - Médico e Tesoureiro da SOBRAMES-CE

                                               ZUMBIDOS


            O mecânico da estrada de ferro está prejudicado do juízo. Ele trabalha no enorme galpão da estação, onde as explosões das locomotivas ferem-lhe os ouvidos. As regras da proteção auditiva não são cumpridas e o ruído excessivo lhe destrói os neurônios da cóclea. Sobrevém a surdez. Não ouve o canto de pássaros, como os de canários, os de graúnas e galos-de-campina. Porque sons de notas graves, as burguesas ele escuta, não vale a pena, são cantos tristes, quase agourentos. Esforça-se para ouvir música, um suplício a privação do cântico.

Os zumbidos, também, atormentam-lhe o sono.  No silêncio da noite eles crescem. Não consegue dormir. Faz lucubrações sobre a causa da enfermidade, o trabalho no reparo de motores de locomotivas. Os estrondos, uma desgraça! Não pode largar o emprego, tem responsabilidades, mulher e filhos.

            O mecânico da estação, que padece de surdez e zumbidos, volta à escola. Almeja ser contador, tem facilidades com os algarismos, quer melhorar de vida, fugir do ruído. Estuda à noite, com dificuldades, não compreende as palavras do professor, não distingue bem os fonemas. Malditos zumbidos! Muda os hábitos. Afasta-se dos amigos, não há conversas quando se perde a audição e tem zumbidos. Despreza a sociabilidade humana, perde o gosto pela vida.

            A cigarra está em toda parte, os estrídulos são constantes e atrozes. Audição difícil, ele perde quase toda a informação do noticiário e custa-lhe muito acompanhar um elenco de novelas. A mulher reclama o volume da televisão. Discutem baixinho para não acordar os meninos. Chateia-se o mecânico da estação. Não pode largar o emprego, ainda não é contador. Desespera-se. Deixa a casa e vai ao bar do seu Neci. Os zumbidos, exacerbados pela cachaça, descontrolam-no. Um tiro os silenciaria de vez, os zumbidos enlouquecedores. Lembra-se, com angústia, de pessoas que transformaram o sintoma em tragédia. Entra no quarto escuro com o equilíbrio afetado pelo álcool, tateia a gaveta da cômoda com desespero. A sinistra operação desperta a mulher.

            - O que você está procurando, Souza?

         O mecânico da estação reconcilia-se com a razão, repõe a pavorosa peça no lugar. Procura conformar o tinido, gerenciar a madrugada insone. Alcança a graça da claridade do dia.  No vigor do sol da manhã comparece à delegacia, como determina a lei, e desfaz-se do sinistro objeto da tentação.  Com o prêmio concedido pela campanha do desarmamento, compra o equipamento para proteger-lhe a sobra de audição, que o ruído excessivo do enorme galpão, a ferrovia não cuidou. E pede a Deus que o proteja para o trabalho de contador.

Sebastião Diógenes.  
 Em 20/setembro/2012.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

POR MARTINHO RODRIGUES - NOVO-TEMPO

Dr. Martinho Rodrigues - Médico e Membro da SOBRAMES-CE

                                                 NOVO-TEMPO

 Em Novo-Tempo serei criança:
 Nenhum gorjeio ou bosque ser-me-á estranho,
 Qualquer cachoeira ou riacho
 Há de refrescar meu corpo e saciar-me a sede.

 Em Novo-Tempo serei marceneiro:
 Em pinhos e mognos
 Hei de esculpir sonhos e esperanças
 Com as ferramentas da paciência e da obstinação.

 Em Novo-Tempo serei jardineiro:
 Antes que os colibris despertem,
 Acolherei as rosas, dedilharei a terra
 E afagarei as sementes do amanhã!...

 Em Novo-Tempo serei médico:
 Atento às intempéries do corpo e da alma,
 Saberei preservar em cada um dos meus atos profissionais

A pureza da criança
A determinação do marceneiro
A sensibilidade e a leveza das mãos do jardineiro.   
                                       
                                                                                         Martinho Rodrigues