AUTOBIOGRAFIA DO DR. WILLIAM MOFFITT HARRIS
ESCRITA
NO ANO DE 2015
Sou, primordialmente,
pediatra sanitarista, nascido em 1935, na cidade de São Paulo, descendente
de irlandeses, lituanos, australianos e londrinos. Meu pai era judeu
e minha mãe anglicana. Eu e meus irmãos fomos criados como anglicanos
e meu pai fazia questão de nos levar todos os domingos à Missa das dez da
manhã na Igreja Anglicana de São Paulo, perto da Estação da Luz. Tanto a
Igreja, quanto a estação, foram construídas na década de 1860 pelos
engenheiros britânicos da São Paulo Railway,
a futura Estrada de Ferro Santos-Jundiaí.
Papai sentava num lugar que lhe era cativo: ficava sob a placa em
memória do Revdo. Morray-Jones, a quem muito admirava. Conheceu-o no Rio de
Janeiro em 1929 quando trabalhava na Phillips
do Brasil. Ficava extremamente emocionado com a maneira dele, ao
subir no púlpito, vociferar bem alto: Trago-lhes
Boas Novas. Na mesma época conheceu o Revdo. William Moffitt que se
tornou muito seu amigo e companheiro de folganças. Jogavam bilhar, golfe,
xadrez; iam ao teatro, a concertos e cinema quando havia bons filmes, fora
um bom whisky escocês que ambos apreciavam.
A sua amizade durou pouco mais de um ano, pois numa tarde de domingo, sob
um sol escaldante, meu xará, ao dar a partida no seu Ford 28 com a alavanca
na frente do veículo, caiu morto nos braços do meu pai. Eram aproximadamente
da mesma idade, entre trinta e cinco e quarenta anos. Iam juntos todos os
domingos, na parte da manhã, para a Igreja Anglicana (Christ Church), na Rua Evaristo da Veiga. A devoção deste
padre a Jesus Cristo e a ênfase do capelão no púlpito ao pronunciar suas
homilias com convicção e lógica em seus raciocínios foram as pedras
fundamentais para a futura conversão de meu pai em 1951.
Às vezes, eu tinha de chegar
mais cedo porque a partir de minha crisma, aos doze anos de idade, fui
elevado à condição de coroinha formado. A partir do ano seguinte,
fiquei aluno interno dos Irmãos Maristas e somente podia exercer esta
função nas férias e fins de semana. Na Igreja tinha como companheiros Brian
Fuller, Franck Olaf Whitton, John Roderick Govier, Anthony McCullough, e
mais um ou dois cujos nomes não me lembro no momento, com os quais
alternava esta função dentro de uma escala cuidadosamente organizada pelo
Revdo. Benjamin J. Townsend.
Meu pai era judeu de origem
lituana por parte de minha bisavó que conseguiu fugir com os filhos e
amigos, via Polônia, dos progroms dos
cossacos russos em meados de 1850. Estes cossacos eram cavalarianos da
elite russa que atravessavam os Montes Urais em fins de semana e se
divertiam indo às pequenas comunidades judias dos países bálticos e mesmo
na Geórgia, decapitando homens, mulheres e crianças com seus longos sabres,
além de eliminarem seus animais que lhes forneciam leite, ovos e carne. Os
judeus, aos sábados (dia do Senhor), naquela época, não reagiam, nem
acendiam fogueiras e consideravam esta morte violenta seu carma.
Aqueles meus antepassados viajaram em navios de cabotagem, após
atravessar a pé o noroeste da Polônia, trocando de embarcações a custa de
joias e dinheiro que portavam. Eram viagens longas e sofridas com alguns
óbitos a se lamentar ao longo dos dois a três meses de caminhada até
chegarem à Inglaterra. Lá, como era costume na época, ao receberem os
imigrantes de povos eslavos, era-lhes apresentada uma lista de nomes comuns
para renovarem ou mesmo receberem documentos, pois seus nomes eram
compridos e impronunciáveis para o cidadão inglês comum. Meu pai sempre
dizia que o sobrenome dos seus antepassados tinha quatorze consoantes e
duas ou três vogais. Chegou a registrá-lo num dos livros de nossa
biblioteca, mas tanto eu, quanto meu irmão Walter, percorremos boa parte da
Enciclopédia Britânica (edição de 1927) como também nossas diversas Bíblias,
sem nunca encontrá-lo. Meu pai nunca foi judeu ortodoxo, embora criado num
orfanato da colônia judia em Londres dos 6 aos 14 anos de idade. Com a
internação do meu avô num hospício, minha avó Sophia não teve condições
financeiras de manter a casa com as três crianças e aceitou internar
meu pai por caridade de seu povo. Cerca de quatro anos depois meu avô
faleceu.
Dos 14 aos 16 anos de idade, meu
pai foi aprendiz numa firma de engenharia elétrica e depois, em 1910, rumou
para Buenos Aires onde ficou hospedado na Associação Cristã de Moços – ACM,
permutando aulas de educação física por cama e comida. Ele era muito forte
e de compleição atlética, pois havia se saído muito bem em competições
escolares na zona leste de Londres na modalidade de argolas olímpicas.
Enquanto isto, a ACM arrumou-lhe trabalho como funcionário eletricista numa
empresa ferroviária. Sempre nos contava como o cometa Halley, com sua
enorme cauda brilhando no céu, o acompanhou em sua viagem de três semanas
para a América do Sul. Por coincidência, seu futuro sogro veio, à
mesma época, para o Brasil em outra embarcação. Conheceram-se apenas em
1934.
Papai casou-se na Igreja
Anglicana e lá fomos criados. Quando eu estava no primeiro colegial em São
Paulo, em 1951, ele foi batizado no Rio de Janeiro com água do Rio Jordão
pelo Revdo. Charles S. Neale que havia sido nosso pároco em São
Paulo. Eu, de minha parte, me transferi para a Igreja Católica Apostólica
Romana para poder me casar com minha esposa, há 55 anos atrás. Seu primo,
Monsenhor Antonio Mariano, não admitia casamentos mistos em sua igreja no
altar-mor e, baixinho como era, quase teve de trepar num banquinho para me
batizar. Antes, porém, discuti com ele a validade do meu batismo na Igreja
Anglicana. Hesitou ao me fornecer o certificado de batismo e escreveu em
baixo sub conditionem.
Eu era um molequinho taludo
em 1939 e dei muito trabalho no primeiro dia de aula no Jardim de Infância
da Escola Graduada de São Paulo (São Paulo Graded School) na Rua Cel. Oscar Porto, quase derrubando a
porta de madeira aos berros e pontapés. Graças aos esforços braçais de
minha mãe e da minha primeira professora e titular da classe Olga Green de
Oliveira, acalmaram-me e seduziram-me com um pirulito, cujo gosto de
framboesa sinto até hoje na boca. D. Olga e a titular da série seguinte,
Mrs. Anne B. Shermann, foram adaptando, conforme exigências culturais da
época, o modelo do Kindergarten,
o primeiro jardim de infância do Brasil, inaugurado por D. Pedro II em São
Paulo na Escola Americana - Mackenzie
College, em 1878. O Graded
School, conforme era conhecido,
foi fundado em 1920 pelas professoras Ruth Kolb e Bel Ribble de famílias
missionárias presbiterianas.
Nestes três anos de jardim de
infância e pré-primário tive como colegas de escola dois futuros
contemporâneos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Pinheiros):
Armando de Aguiar Pupo (R.I.P.) e Michael Pink (R.I.P.). Frequentei,
também, a Escola Americana - Mackenzie
College, onde fui parar umas três vezes na Diretoria à presença de Miss
Ida Eloise Kolb. Foi preciso até chamar minha mãe a fim de me
colocarem em meu devido lugar. Tornaram-se muito amigas devido à afinidade
linguística, apesar dos incidentes de pugilato infantil. Fiz meus estudos
primários em várias escolas, pois meu pai cansava de receber queixas a respeito
do meu comportamento belicoso com os colegas. De nada valia a pancadaria
quando chegávamos à nossa casa, principalmente quando levava a pior e os
olhos estavam inchados por causa dos socos dos outros meninos.
A seguir, estudei na Escola Britânica
St. Paul's School. Lá, Mr.
Charles Hindley tinha uma varinha em seu escritório reservado para peraltas
como eu... Fiquei com meu irmão Johnny, ele duas séries na minha retaguarda,
na Escola Britânica até a 1ª série ginasial. O educandário foi forçado,
como outras grandes instituições de ensino de língua estrangeira, a mudar
seu nome para Ginásio Anglo-Paulistano por exigência ditatorial
nacionalista, na era getuliana, durante a Segunda Guerra Mundial. Fui
aluno de Algacyr Munhoz Maeder, Aroldo de Azevedo, Haddock Lobo, João
Julião e outros famosos didatas da futura Faculdade de Filosofia da USP.
Sinto saudades daqueles tempos. D.Irene Teixeira Nogueira Florence, a muito
temida e eficiente secretária, era uma sobrinha neta de Hercules Florence e
uma distante contraparente da minha esposa Maria Lúcia.
Foi lá que recebi meu
primeiro prêmio em Literatura. Tinha doze anos de idade quando fui
classificado em segundo lugar em Literatura Inglesa. Presentearam-me com o
livro de Alexandre Dumas, Os três
mosqueteiros, que é uma das relíquias de nossa biblioteca aqui em
casa. Na contracapa há uma nota do Papai: Bravo, Billy! Daddy. 28-Nov-1947. Quando criança, meu pai me
obrigava a devorar os principais clássicos da língua inglesa, fossem
ingleses, americanos, irlandeses, escoceses e até mesmo traduções da
literatura internacional para este idioma. Ensinava-me fatos da vida destes
autores e os contextos das épocas em que viveram e escreveram. Ele sempre foi
um árduo leitor, principalmente da Enciclopédia Britânica, e era uma pessoa
de extraordinária cultura geral e um exemplo para seus filhos.
A partir de 1948, aos 13 anos de idade, fui interno do Ginásio
Municipal Marista de Poços de Caldas-MG, onde terminei o curso ginasial em
1950. Lembro-me, como se fosse ontem, de minha matrícula naquele
estabelecimento. O Diretor, Irmão João de Deus, ouviu calmamente meu pai
explicar que consultara nosso bispo itinerante da Igreja Anglicana onde havíamos
sido batizados e que era de origem judaica e maçom. Portanto, estávamos em
terrenos opostos etc.. Infelizmente, meu pai, na presença do Diretor deu-me
um tapa na orelha (sinto buzinar até hoje) quando respondi muito baixinho a
uma de suas perguntas. O Irmão João de Deus disse, simplesmente: Não se preocupe, Sr. Walter. Temos
muitos alunos judeus e protestantes aqui na escola que só assistem à Santa
Missa diária se assim o desejarem. Não nos culpe se, mais tarde, seus
filhos se tornarem católicos apostólicos romanos. Nada forçaremos. Quanto à
questão da maçonaria, deixemos que nossas autoridades, de ambos os lados,
se entendam lá em Roma.
Cinquenta anos depois, no ano 2000, organizei o Jubileu de Ouro com a
colaboração de alguns colegas, minha esposa Maria Lúcia e o Padre Marcelo
Prado Campos, ex-capelão do Colégio. Compareceram 85 pessoas, entre as
quais 34 ex-colegas (19 já haviam falecido), incluindo cinco de nossos
ex-professores. Um deles, Irmão Louis George Spies Barberet, veio lá de
Araçuaí-MG, no Vale do Jequitinhonha, a dezoito horas de ônibus, passando
por Belo Horizonte, para chegar a tempo para a comemoração em Poços.
Naquela cidade organizara com as crianças de rua uma banda de mais de 110
instrumentistas dentre os quais um grupo de destaque de cerca de trinta
pifanistas. Melhorou assim o desempenho escolar do pessoalzinho, pois todos
queriam fazer parte da banda e desfilar uniformizados pelas ruas nos dias
de festa. Irmão Francisco (corruptela de François), como era conhecido, veio com 16 anos ao Brasil com
Irmão Fabiano (Prof. Dr. Fioravante Marta, de Uberaba) direto do Juvenato
de Roma e aqui permaneceram até a morte. Irmão Fabiano obteve seu
título de mestrado na Faculdade de Santa Maria em Oxford e o doutorado em
letras anglo-saxônicas na Universidade Federal de Belo Horizonte. Como não
obteve licença dos seus superiores para cursar as disciplinas
necessárias na UNICAMP de Campinas-SP, abandonou a batina e acabou se
casando. Ele e dona Odete estiveram na festa do ano 2000 onde nos brindou
com momentos muitos alegres ao piano e ao órgão da igreja onde foi realizada
a Missa de Ação de Graças.
A Missa de Ação de Graças foi
rezada na Igreja Paroquial de Santa Cruz à qual pertence a área do colégio,
uma vez que a antiga capela do colégio foi desconsagrada com a
municipalização do prédio em 1989, quando terminou o contrato de comodato
dos Maristas. As Intenções desta Missa foram por mim redigidas e lidas logo
que o Padre Mahoney da congregação canadense dos Padres Oblatos de Maria
havia chegado ao altar. Creio que dois trechos cabem nesta minha biografia:
Somos, antes de mais nada,
cristãos e como muitos santos já o disseram e já o testemunharam, Cristo
vive em nós. Ele está dentro de nós e não apenas no meio de nós. Este corpo
que abriga nossa alma eterna é o tabernáculo do Senhor e cabe a cada um de
nós cuidar dele e continuar a obra do Grande Arquiteto. Ele habita em nós
porque é eterno e ilimitado o amor que Ele tem por nós.
O que realmente conta são as
coisas espirituais: o amor, a compaixão, a bondade, a compreensão, o
perdão, a confiança e a generosidade. Sejamos, portanto, bem-vindos à Casa
do Senhor, a Poços de Caldas, ao Colégio e demos graças a Deus por nossa
fé, nossa saúde, nossa disposição e por esta magnífica ocasião. Que Deus,
Nosso Senhor, abençoe eternamente os Irmãos Maristas pelas marcas
indeléveis que deixaram em todos nós e que o tempo só pôde acentuar.
Irmão Francisco leu o Evangelho do Bom Pastor segundo S. João,
cap.10º, versículos 1 a 18. O segundo texto, contido no Livro do
Eclesiastes, cap. 3º, versículos 1 a 14: Todas as coisas têm seu tempo e todas elas passam debaixo do céu
segundo o tempo que a cada uma foi prescrito. Há tempo para nascer e tempo
para morrer. Há tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou...,
foi lido pelo colega José Affonso Junqueira Netto
Durante a Missa, nosso colega Vitor Maywald, médico e consagrado cantor
do Rio de Janeiro, recém-safenado, brindou-nos com Adagio de Tommaso Albinoni (1674-1745), Panis Angelicus de Cesar Frank (1822-1890) e Ave Maria de Charles Gounod
(1818-1893). Vitor fez questão de prestar esta homenagem, contudo a viagem
e a emoção foram demais para ele. Mal chegando de volta ao Rio, foi
hospitalizado, vindo a falecer poucas horas depois.
Depois da Missa, Irmão Fabiano tocou, atendendo a pedidos, a Grande Fantasia Triunfal sobre
o Hino Nacional Brasileiro de Louis Göttschalk (N.Orleans 1829 - Rio
de Janeiro 1869) que havia dedicado à sua Alteza Condessa D' Eu.
Irmão Fabiano adorava arregaçar a batina e jogar futebol com os alunos
quando Irmão Marista e como ele depois se auto-elogiava: ... e jogava um bom futebol!.
Irmão Francisco me lembrou, por ocasião desta festa o quanto fiquei
chateado com duas notas baixas em inglês (9,5 ao invés de 10) em dois
boletins mensais. Meu pai não gostou e me culpou por não prestar mais
atenção na leitura dos livros que vivia selecionando para mim.
Outro professor de Poços de quem
tenho muitas saudades é o Irmão Nemésio Calixto, regente da Divisão dos
Menores, literato e estudioso do alemão, francês e inglês. Era membro da
Academia Portuguesa de Letras e a cada três anos conseguia verba de uma
entidade beneficente para viajar a Coimbra para apresentar seus
trabalhos. Ajudei-o bastante com seu inglês e, em contrapartida,
moldou minha personalidade a partir do segundo ano que lá estive.
Ensinou-me a estudar, fazer associação de imagens e ideias, melhor
aproveitando assim o tempo. Eu vivia de castigo, decorando trechos enormes
da literatura de língua portuguesa a cada falta cometida de
disciplina. Quando cheguei à escola, por ocasião da matrícula do meu segundo
ano lá em Poços, ele disse a meu pai ao lhe brandir um enorme molho de
chaves: Desta vez, Sr. Walter, o
William não vai ter tempo para fazer arte. Aqui estão as chaves que serão
de sua responsabilidade. Cada uma delas tem uma etiqueta dizendo de onde
são. Vai distribuir, recolher, engraxar e guardar as bolas de futebol,
basquete e vôlei, juntar as bolas e tacos de snooker, policiar o fluxo dos
alunos pelos pátios, principalmente na entrada das casinhas onde só poderão
entrar de um em um etc... Irmão Nemésio tornou-se muito amigo de meu
pai e ia lá em casa todas as vezes que viajava com o caminhão da escola a
São Paulo para fazer compras no Mercado Central de Pinheiros, no Largo da
Batata. Exerceu a função de ecônomo até que sua diabetes o levou à presença
do Senhor. Meu pai arrumou consultas para ele com Drs. Brickmann e
Schroeder, excelentes clínicos gerais, amigos de nossa família.
Sou essencialmente, o que é mais ou menos óbvio, um memorialista e
saudosista e, frequentemente, me recordo de outros ilustres professores e
colegas que tive ao longo dos anos. Aos quinze anos e meio me matriculei no
Colégio Marista Arquidiocesano de São Paulo onde fui muito bem
preparado para enfrentar meu único vestibular em 1954 para a Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP. Formei-me em 1960 e,
em meados de 1961, rumei para Osvaldo Cruz, no interior de São Paulo, onde
exerci a Clínica Geral por dois anos. Fui para o interior por sugestão do
médico que me trouxe ao mundo e que tanto me ajudou financeiramente e como
conselheiro durante meu curso de Medicina, Dr. Thomas Russell Warren,
irlandês, do Hospital Samaritano. Minha intenção inicial era ir
trabalhar com Dr. Albert Schweitzer, em Lambarènè, no Baixo Rio Ogooué, na
antiga África Equatorial Francesa (hoje Gabão), quando li seu livro Entre a Água e a Selva, aos
dezesseis anos de idade.
Em Osvaldo Cruz, nasceu nossa primeira filha, Ana Lúcia, que hoje é
arquiteta-urbanista, com doutorado em engenharia civil pela Escola
Politécnica da USP e professora há duas décadas na UNICAMP. Por razões
familiares, vim de volta a Campinas onde a família da Maria Lúcia residia e
logo entrei para o serviço público estadual, em agosto de 1963, num
Posto de Puericultura do extinto Departamento Estadual da Criança.
Em 1969, em tempo integral, acompanhei o Curso de Especialização em
Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP (antigo Instituto de
Higiene e Saúde Pública). Muitos de meus professores, companheiros do
Departamento de Saúde Materno-Infantil, onde lecionei, mais tarde, de 1974
a 1995, e de alguns de outros departamentos tornaram-se meus amigos. Só
para citar alguns: Cornélio Pedroso Rosenburg, Donald Wilson, Arnaldo
Augusto Franco de Siqueira, Isabel Maria Bicudo Pereira, Luzimar Raimundo Teixeira,
Reinaldo Ramos, José Divino Lopes Filho, Alfredo Reis Viegas e João Alvécio
Sossai, Durante o período em que
trabalhei meio período na Faculdade de Saúde Pública, tive como orientador
de minha dissertação de mestrado e tese de doutorado, o Prof. Rosenburg que
também me chefiava no Departamento de Saúde Escolar da Prefeitura Municipal
de São Paulo no resto do dia.
Tanto na Secretaria da
Saúde do Estado, na Divisão Regional de Saúde de Campinas e do Vale do
Paraíba, e nas Secretarias da Saúde e da Educação do Município de São
Paulo, exerci diversos cargos de chefia técnica e de direção, ora na função
assistencial assessora, ora na linha executiva. Acabei me interessando mais
pela área de saúde escolar em suas quatro vertentes (saúde da criança,
saúde dos professores e dos funcionários não docentes, da área física e
saneamento básico da escola e da integração lar-escola-comunidade). Em
1984, classifiquei-me em primeiro lugar no concurso público para provimento
efetivo do cargo de Médico de Saúde Escolar. Havia 80 vagas e 1.242
candidatos.
Além do Curso de Saúde Pública,
frequentei por três meses, em 1971, também em tempo integral, o Curso de
Especialização em Planejamento Setorial de Saúde sob a batuta dos Profs.
Reinaldo Ramos e Aldo da Fonseca Tinoco, assim como o Curso de
Especialização de Higiene, Segurança e Medicina do Trabalho para Médicos da
FUNDACENTRO, cujos coordenadores Profs. Diogo Pupo Nogueira e Jorge Rocha
Gomes muito me honraram com sua amizade nos anos seguintes. Levei muitos diapositivos
feitos às minhas custas a partir de fotografias que tirei para ilustrar
condições inseguras em escolas que fui visitar ao longo de minhas funções
enquanto trabalhava como médico de saúde escolar. Por coincidência,
Professor Diogo e minha esposa tiveram o mesmo bisavô, Cel. Luciano
Teixeira Nogueira, que teve trinta e quatro filhos com duas esposas. Quando
seu filho mais velho, Major Francisco de Paula, morreu na Guerra do
Paraguai, colocou o mesmo nome num dos seus últimos e que foi o avô da
Maria Lúcia.
Em 1971 e 1972, trabalhei por cerca de um ano e meio como assessor
técnico-administrativo da Divisão Médica do Departamento Regional de São
Paulo do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI onde muito
aprendi sobre a preparação de aprendizes de 14 a 18 anos de idade. Tendo
frequentado o Curso de Especialização em Saúde Pública, o de Planejamento
Setorial de Saúde e o da FUNDACENTRO, fui considerado apto a desenvolver,
na linha executiva, um plano diretor de rearranjo sanitário das escolas do
SENAI, a pedido do seu Diretor Geral, Dr. Paulo Ernesto Tolle, ex-diretor
do Instituto Tecnológico de Aeronáutica de São José dos Campos – ITA. Quando
Secretário da Educação da Prefeitura Municipal de São Paulo, Dr. Paulo
Ernesto conheceu Dr. Rosenburg. Chamou meu caro orientador para colaborar
com ele no SENAI e este, após uma semana, preparou com os Profs. Reinaldo
Ramos e Aldo da Fonseca Tinoco o contrato que finalizou um estudo que já
vinham fazendo durante três meses de um projeto de saúde pública para o
SENAI estadual de São Paulo. Assinado o contrato entre a Prefeitura e a
Faculdade de Saúde Pública, fui indicado e aceitei a incumbência de ser o
coordenador executivo do projeto, devendo mensalmente fornecer um relatório,
tanto para a comissão dos três professores, como para a Diretoria do SENAI.
Neste ínterim, fiquei afastado da Faculdade, em licença não remunerada. Dr.
Paulo Tolle foi de uma amabilidade extraordinária, mostrando muito
interesse no progresso de minha atuação. Deu algumas sugestões e passou por
cima da burocracia hierárquica da Divisão Médica, o que gerou algumas
confusões e ciumeira a ponto de atritarmos algumas vezes. Meus superiores
formais hierárquicos, médicos antigos da instituição, não entendiam as
providências que eu estava tomando e urravam com meus comentários no
relatório mensal que eu batia em cinco vias em papel de seda. Não
compreendiam a filosofia preventivista do sanitarista e enfocavam seu
trabalho e dos médicos da rede de forma puramente assistencial e clínica.
Não era culpa deles e, fora os detalhes técnicos, eu me dava muito bem com
os colegas Octávio Siqueira Cunha e Drs. Béllio e José Alvarenga. Nos
intervalos do almoço, quando eu estava na sede na Alameda Barão de Limeira,
observava-os nos embates de xadrez.
Chamou-me muito a atenção a personalidade e atuação do colega
Prof. Dr. José Rosemberg, futuro diretor da Faculdade de Medicina de
Sorocaba. Foi extremamente gentil comigo quando fui ao seu apartamento,
perto da Praça Buenos Aires em Higienópolis, a fim de convidá-lo a um
encontro científico com Dr. Rosenburg na Faculdade de Saúde Pública,
a ser mediado pelo Professor Diógenes Augusto Certain, catedrático de
Tisiologia e Pneumologia Sanitária, a fim de dirimirmos algumas dúvidas
técnicas relativas às vantagens da Rt-23 de Kopenhagen e abandonar por
completo a OT (Old Tuberculin) oral e introduzir o PPD no lugar do
Mantoux. Aprendi muito neste debate que durou mais de três horas, na
presença de alguns alunos de pós-graduação que participaram
levando suas dúvidas. Concordou em ajudar, onde possível, num levantamento
nos alunos pelo PPD quanto à infectividade da tuberculose, mesmo contra
suas próprias convicções, baseadas em trabalhos feitos em conjunto com o Prof.
Dr. Arlindo de Assis do Instituto Oswaldo Cruz, em Manguinhos, no Rio de
Janeiro. Mais tarde fotografei amostras das diversas fases (7) da
evolução da cicatriz vacinal do BCG intradérmico aplicado nos não
reatores durante uma pesquisa de três meses, traçando curvas quanto a sua
duração, trabalho este que apresentei no concurso de efetivação como
docente da Faculdade em 1974. De lá me aposentei em 1995. Durante este
período obtive meus títulos de mestrado e de doutorado em Saúde Pública.
Em 1977, estive por dois meses e meio no Institute for Development Studies da Universidade de Sussex na
cidade de Falmer, perto de Londres, participando de um curso de extensão em
Planejamento no Setor Saúde com a Comunidade. Fui com bolsa da British and Commonwealth Community
Council de São Paulo. Havia cerca de sessenta alunos na minha turma,
advindos de quarenta e um países dos cinco continentes. Em três dos fins de
semana, fui cicerone e intérprete para subgrupos de cerca de dez colegas.
Conhecia bem Londres pelas narrativas do meu pai e de filmes e fotografias
que tínhamos em casa, além de relatos de viagens de outros professores que
lá estiveram. Foi com viva emoção que fiquei ao lado de uma das patas de um
dos leões do monumento ao Almirante Lord Nelson, na praça Trafalgar, sobre
o qual, aos dez anos de idade, em 1904, meu pai havia sentado.
Em 1979, durante a gestão do Diretor da Faculdade de Saúde Pública,
Prof. Dr. Walter Engrácia de Oliveira, fui oficialmente convidado para ser
entrevistado em Washington na sede da Organização Panamericana da Saúde -
OPS. Havia vindo para o Brasil, na função de head-hunter, buscando pessoal técnico, um simpático senhor de
seus setenta anos, Dr. Carlos, professor catedrático aposentado de saúde
pública da Universidade Central do México. Ambos me disseram na Diretoria
que eu tinha as qualificações suficientes e havia sido altamente
recomendado por vários setores da Faculdade para as funções que iria
exercer em Washington. Tinha, no entanto que aguardar o convite oficial e a
passagem. Voltando ao departamento onde era docente, Prof. Dr.Cyro Ciari,
então chefe, disse-me de forma bem clara que ele havia feito a indicação,
numa reunião com o Diretor, alguns dias antes, muito embora houvesse na
Faculdade gente bem mais qualificada para o cargo. Eu era apenas um mero
mestre e que nem proposta para a tese de doutoramento havia ainda
apresentado ao Conselho do Departamento. Cerca de seis meses depois, numa
quinta-feira, a Faculdade recebeu um telegrama de Washington dizendo que eu
deveria me apresentar no gabinete do Diretor Hector Acuña, na próxima segunda-feira,
pontualmente às 10h locais, a fim de tratar de assuntos do meu interesse.
Nem o passaporte eu havia renovado e, de acordo com as normas daquela época,
teria de tirar outro. Com um telefonema confidencial, Dr. Cyro explicou o
caso para seu amigo particular, o delegado Dr. Nicolau Tuma, e este pediu
que eu fosse, no dia seguinte, com três fotografias do tamanho adequado ao
seu gabinete que ele me entregaria o documento em mãos. Foi um milagre
porque a demora normal seria de pelo menos um mês. O telegrama da OPS
explicitava a companhia aérea e as informações sobre o bilhete que deveria
retirar no check-in, além do
hotel Riverside, às margens do Rio Potomac, onde haviam feito reservas.
No dia e hora aprazados, bati na porta do Diretor. Entre Dr. Harris! - ele respondeu. Encontrava-se
à mesa assinando alguns papéis com a secretária e me mandou sentar e aguardar
um minutinho. Falava um portunhol e eu me arrisquei a conversar com
meus parcos conhecimentos de castelhano. Interrompeu-me e, num inglês escorreito,
disse-me francamente. Seu castelhano
é terrível mas aqui em pouco tempo o senhor haverá de aprendê-lo....
Apresentou-se. Em linhas gerais, era reitor afastado da Universidade Iberoamericana
Torreón-Laguna do México e teve de abrir mão dos seus vencimentos para
ganhar um pouco mais do que a metade enquanto trabalhava na OPS. Era
um cristão religioso e caridoso, por tudo que pude mais tarde apreender.
Passou a elogiar meu currículo e mostrou interesse em minhas atividades na
Prefeitura, na Secretaria de Estado da Saúde e no SENAI como pessoa
exercendo cargos de chefia técnica e de direção. Eu lhe disse que Dr.Cyro
Ciari, quem ele já conhecia de congressos de ginecologia e obstetrícia e de
saúde pública no México, Venezuela, Chile e em São Paulo, incumbira-me de
lhe dizer que esperava que minha atuação em Washington, junto a OPS, viesse
a gerar convênios ativando projetos na área materno-infantil, foco
principal do nosso departamento em São Paulo. Explicou-me em linhas gerais
que um dos objetivos daquele terceiro mandato dele como Diretor era
reformular a infraestrutura da OPS, criando uma forma menos burocrática e
mais flexível no inter-relacionamento dos diversos setores envolvidos e
garantir mais rapidez e eficiência no atendimento às emergências dentro da
área geográfica sob sua responsabilidade. Vislumbrava para mim o
cargo de Chefe da Seção Materna e da Criança ou, eventualmente, de assessor
em seu gabinete.
Em seguida, percorrendo os corredores, foi me apresentando e
agendando entrevistas com vários chefes de seções, começando aquela tarde.
Foram sete as entrevistas. Seria um pouco enfadonho descrever as minúcias
de cada uma das entrevistas e pretendo não incorrer em descrições antiéticas
em que as pessoas poderiam ser identificadas. Tenho a dizer que foi uma
experiência notável que me enriqueceu quanto ao conhecimento do
funcionamento da OPS, seus sucessos e algumas falhas. Senti que havia certa
preocupação em termos de promoção pessoal e poucos trabalhos de equipe
publicados. Um dos chefes de seção confessou não ter tido tempo para me
receber e queria que eu conduzisse a entrevista, uma vez que era meio
avesso a repórteres. Relaxou quando lhe expliquei como fui convidado e que
não havia qualquer compromisso de parte a parte. Lembrei-me de alguns
princípios e de como conduzir uma entrevista dados em aula pela Profª. Dra.
Ruth Sandoval Marcondes da Faculdade de Saúde Pública e fomos bem
sucedidos.
Depois de tantos anos, fogem-me alguns detalhes, mas sei que passei
pelas chefias de quase todas as seções técnicas e depois a administrativa
geral. Assim, fiquei conhecendo alguns aspectos de pesquisas e subprogramas
em andamento das áreas de saneamento básico, abastecimento em situações de
risco e calamidade, saúde da mulher, saúde da criança, epidemiologia,
tuberculose, hanseníase, moléstias infectocontagiosas em geral e as ideias
de integração sanitária que tanto preocupavam Dr. Acuña. Lembro-me de que ele
pensava em dar um pulinho em São Paulo para bater um papo com Prof. Walter
Sidnei Pereira Leser sobre a reforma sanitária em curso no Estado de São
Paulo. Das entrevistas, a que mais ficou marcada em minha memória foi a de
epidemiologia. O colega estava tremendamente ocupado,
desenhando dois gráficos e não me deu muita atenção enquanto eu estava de
pé a sua frente. Fiquei parado ali por alguns minutos e ousei olhar o que
ele estava fazendo. Marcava cuidadosamente pontos que posteriormente seriam
unidos. Não me lembro se eram gráficos de incidência e de prevalência de
sarampo, polio ou gripe suína que grassavam naquela época nos Estados
Unidos. Percebi que num dos gráficos havia uma deflexão, enquanto no outro,
para o mesmo mês, havia uma inflexão. Pedi licença e apontei o seu
equívoco. Ficou uma vara! Ustedes
veio aqui para ser entrevistado e não fiscalizar nosso trabalho; não necessitamos
de aulas no nosso mister... ou coisa parecida. Pedi desculpas, pois
pretendia colaborar e não atrapalhar. Tremia de raiva e encurtou logo a
entrevista.
Outra coisa negativa que me impressionou foi o grande segredo
sobre determinados equipamentos de oxigenação ambiental ou de ar comprimido
que o encarregado não quis me mostrar. Liguei para Dr.Acuña que
desceu imediatamente, interrompendo uma reunião, pegou a chave num armário
e mandou o encarregado abrir a seção. Mostrou-me pessoalmente todo o
material e disse-me que haviam importado este equipamento novíssimo da Alemanha,
via OMS, e que não havia sido ainda testado. Haveria ainda medidas
burocráticas a serem tomadas a fim de liberá-lo. Hoje penso que eram concentradores
de oxigênio até mesmo de uso doméstico. Há uns seis anos atrás, quando
minha esposa utilizou aparelhos semelhantes durante três anos, dia e noite,
cerca de mil e oitocentos pessoas já se utilizavam deles na região de
Campinas.
No fim da semana, na sexta-feira, Dr. Acuña me chamou na sua sala e
me expôs as conclusões de todos seus colaboradores, com quem havia se reunido
à noite, na véspera, pois achava que eu iria voltar para o Brasil no
sábado. Foi direto ao ponto. Elogiaram minhas argumentações técnicas em
todas as áreas, mas ficou patente que eu não tinha muito tato político ou
diplomático e precisava receber treinamento e monitoria nestas áreas.
Foi-me sugerido um estágio nas Bermudas de um ou dois anos para conhecer
melhor o inter-relacionamento de funcionários da organização. Recusei de
pronto, pois tinha cinco filhos e a mais velha já a caminho da
universidade. Para Dr.Acuña, isto não seria problema, pois a
família ficaria em Caracas, sem despesas, enquanto eu viajasse duas vezes
por semana pela ponte aérea (shuttle
flight) para vê-la. Insistiu bastante para que consultasse a esposa.
Passei pelo setor administrativo para carimbar minha passagem de
volta e o pessoal de lá quase caiu duro, pois eu deveria ter feito isto
quando fora aos Estados Unidos, visto ter sido em período de férias
escolares. Ficou claro para todos que houve falha de comunicação entre os diversos
setores da OPS quanto à minha visita. Tive até de mudar de apartamento no
hotel, ou melhor, já tinham apanhado meus pertences e colocado com todo o
cuidado em minha mala, pois o hóspede seguinte havia chegado. Fiquei mais
três dias além do programado e nada tinha para fazer a não ser passear
beirando e observando o Potomac, enquanto conversava com antigos moradores
que me contaram histórias e me mostraram marcas da grande ressaca de 1936.
Comia fora, enquanto aguardava notícias da reserva em um avião boliviano
que iria para La Paz. Lá, aguardaria vaga, por um ou dois dias, em
avião da Pan American para São
Paulo. Na saída do hotel, deixei uma pilha de livros e revistas que o
pessoal da OPS havia me incumbido de levar para a Faculdade. Os
funcionários do hotel foram muito amáveis em providenciar a remessa
diretamente para o Diretor sem nada me cobrar. Tinham uma previsão
orçamentária para pequenas despesas deste tipo, face ao convênio com a
Organização.
Ao chegar para o check-in
do aeroporto, comecei a me sentir mal. Uma tremedeira daquelas! No serviço
de enfermagem, constaram que eu estava subfebril, uns meros 37,5ºC mais ou
menos, e me dispensaram, contudo alertando-me que se eu apresentasse
sintomatologia gripal, poderia ser a gripe suína que era de notificação compulsória.
Estava escurecendo quando aterrissamos em Santa Cruz de la Sierra e vi pela
janela que um avião da Cruzeiro do Sul estava se preparando para partir.
Uma das hélices do bimotor já estava sendo acionada. Saí do avião com os
passageiros que iam descer naquele aeroporto e corri para o balcão
indagando se aquele avião estava indo para o Brasil e se havia lugar para
mim. Estava pálido, tremendo de febre, desesperado, cansado pela
péssima viagem e, com a afirmativa, implorei para que me deixassem ir
embora. Mas... E a sua bagagem?...
Nem deixei a moça terminar a frase. Fiquem
com a bagagem de presente. Só tem roupas e alguns livros...
Pararam o avião, que atrasou uma meia hora, pois fizeram questão que eu
embarcasse com minha mala. No pescoço, carregava uma sacola com minha
máquina fotográfica e alguns documentos importantes. Pedi a eles que
passassem um cabograma ou telefonema para meus familiares em Campinas
a fim de me pegarem no aeroporto já que iam para lá. Alguns dias
depois, uma funcionária da OPS telefonou querendo saber se estava
tudo bem. Contou que Dr. Acuña estava preocupado porque um funcionário do
aeroporto ligado ao comissariado de polícia havia ligado para lá, porque eu
portava no pescoço um crachá da OPS, com meu nome e período de frequência à
instituição. Embora estivesse bem vestido, estava tremendo de febre e
agitado, causando, provavelmente, má impressão.
Na segunda-feira, liguei para a Faculdade pedindo que avisassem
Dr.Cyro que eu estava de cama com muita febre e dor no corpo inteiro,
mormente nas juntas. Deram-me então a triste notícia de que ele havia
falecido no sábado de um enfarte súbito e violento. Ninguém em casa ficou
doente, nem sequer minha esposa que dormia na mesma cama. A febre foi muito
alta, quase 41 graus e um mal estar muito desagradável além da dor nas articulações
e ossos. Após uma semana, embora fraco, voltei a trabalhar. Alguns anos
depois, o Prof. Dr. José Maria Ferreira, infectologista e assistente do
Prof. Veronesi, disse-me que, com toda a certeza, eu tive dengue e não
gripe suína que até se assemelha um pouco pela sintomatologia.
Interrogando-me em termos anamnésticos, lembrei-me de que havia ficado
sentado no aeroporto do Panamá por seis horas, aguardando a conexão
para Washington. Percorrendo exemplares antigos do boletim epidemiológico
da OPS, verificamos que justo naquela ocasião o Panamá e países vizinhos
estavam sofrendo muito com a dengue. Recebi algumas boas picadas e disto me
lembrei. O pessoal auxiliar do aeroporto estava circulando uma garrafa com
uma solução alcoólica que passamos com as mãos nas picadas. Dezessete anos
depois, liguei para Dra. Luiza, do Instituto Adolfo Lutz, que cuidava da
Seção de Virologia, já que eu estava receoso de pegar a dengue hemorrágica,
pois grassava uma séria epidemia em Campinas. Disse-me que provavelmente
estaria com IGG em níveis protetores contra aquele de 1979 e que, de lá a
esta data, houvera muitas mutações do vírus e dificilmente corria aquele
risco. Era este o conceito da época.
Recebi a visita em minha sala do Prof. Dr. João Yunes, alguns dias
depois que voltei da OPS. Eu tinha acabado de conversar com Dr. Carlos
Serrano, antigo servidor da OPS que estava cuidando de sua papelada na
Faculdade e visitando alguns amigos que havia deixado tempos atrás. Estava
para aposentar. Dr.Yunes já conhecia o pessoal da OPS em seus entrosamentos
como Secretário Geral do Ministério da Saúde e voltara para a Faculdade
para terminar sua docência. Ambos disseram que eu fizera uma grande besteira
ao recusar um bom emprego, com um provento inicial de quinze mil dólares
anuais e o triplo ao aposentar quinze anos depois. O estágio nas Bermudas
seria no máximo de três meses a fim de conhecer e usar a papelada e a
rotina dos fluxos de documentos. Poucos meses depois, soube que Dr. Yunes
estava lá trabalhando no cargo a mim oferecido. Após cinco anos, ele voltou
para São Paulo a fim de assumir a Secretaria de Estado da Saúde do Governo
Franco Montoro e daí a poucos anos foi eleito Diretor da Faculdade de Saúde
Pública, por unanimidade da Congregação. Faleceu de câncer pulmonar,
enquanto no cargo. Cheguei a conversar poucos meses antes com ele. Estava
sentido porque nunca fumara, a não ser passivamente, em reuniões
esfumaçadas da OPS. Com seu falecimento, a OPS proibiu, definitivamente,
o fumo em suas dependências. Os funcionários, após algum tempo, acabaram
por desistir de fugir à rua para dar algumas tragadas e voltar correndo ao
trabalho.
Cerca de seis ou sete anos
depois, recebi um convite da regional da Organização Mundial da Saúde para
trabalhar num de seus escritórios de língua portuguesa na África e que
havia sido indicado num dos periódicos internacionais da Organização.
Minhas quatro filhas estavam todas bem encaminhadas e havíamos perdido meu
filho Dado. Minha esposa e eu resolvemos continuar erigindo nosso próprio
destino aqui em Campinas mesmo. Mandei-lhes uma carta agradecendo o
convite.
Fui cofundador da
Associação Brasileira de Saúde Escolar – ABRASE, em 1984, num congresso de
Pediatria Sanitária, no Hotel Glória, e coordenador na montagem de quatro
eventos na área, um em Vitória-ES, em 1988, um no Rio de Janeiro, em 1991, dois
em São Paulo, em 1989 e 1992, durante minhas gestões como Presidente da
entidade. Fundei e dirigi por nove anos a Revista Brasileira de Saúde
Escolar, periódico bianual (sete fascículos em três volumes, nos anos 1990,
1992 e 1994), contando sempre com a colaboração dos professores de educação
física e experts em computação
eletrônica, Luzimar Raimundo Teixeira e Pascoal Luiz Tambucci, do
Departamento de Educação Física da USP. Por ocasião da fundação da ABRASE,
havia trinta e quatro colegas e ao término de minha segunda gestão já se
somavam mil e duzentos associados, entre pessoas físicas e jurídicas
(unidades sanitárias, escolas particulares e públicas, departamentos e
seções de saúde escolar de governos municipais e estaduais etc.).
Durante minha segunda gestão, a
equipe da ABRASE e professores de outras universidades e instituições formais
e entidades informais foi, finalmente, após anos de luta com muitas
reuniões, circulares, boletins e revistas, derrubada a vergonhosa e
equivocada exigência nacional do exame médico para fins das aulas de
educação física escolar (prevista no Art.12 do Decreto Federal 69450 de 1º
de novembro de 1971). Participaram nesta luta a Sociedade de
Pediatria de São Paulo de cujo Comitê de Saúde Escolar fui coordenador em
duas gestões, a Sociedade Brasileira de Pediatria, o Governo do Estado do
Paraná que, assessorado pelo médico Gerson Zanetta de Lima a quem
historicamente cabe a primazia da preocupação com esta farsa, baixou a
Resolução 1795, de 9 de maio de 1985, eliminando a obrigatoriedade destes
exames. Seu artigo, publicado pela editora Cortez, em 1986, em colaboração
com B.Turini (Cadernos CEDES,15, Exame
periódico para educação física vale à pena?. Diga-se de passagem, que o
Decreto Federal 69450/71 em seu Art.12, fala em exame clínico e não apenas exame
físico ou exame médico. A
diferença reside na indispensabilidade da anamnese com todo um
interrogatório relativo a antecedentes mórbidos pessoais e familiares da
criança. Caso contrário, o cenário montado é o de uma verdadeira veterinária pediátrica ou pediatria veterinária. Em duas
ocasiões, tomei conhecimento que indivíduos formados em medicina teriam
examinado numa tarde um total de aproximadamente trezentas crianças no pátio
coberto da escola ou no campo de futebol, independentemente do barulho do
tráfego em torno do estabelecimento. Durante suas aulas de
cardiologia clínica, nosso professor Luiz Venère Décourt várias vezes
mencionou que o ouvido cansava após a vigésima ausculta seguida e levava
horas para se recuperar.
Na evolução dos
acontecimentos, tiveram marcante influência a Carta de Vitória e A Mensagem
de São Paulo, subprodutos de congressos da ABRASE, além de duas reuniões na
residência da Dra. Zilda Arns, em Curitiba, berço e sede da Pastoral da Criança.
Nestas reuniões, estiveram além da dona da casa e minha pessoa, Dr. Gerson
Zanetta de Lima, Dr. Paulo Cesar de Almeida Mattos do Rio de Janeiro,
João Luiz Kobel, de Campinas e Presidente da APSE, além de um filho médico
da Dra. Arns. A preclara e dedicada médica sanitarista, Dra Zilda Arns,
teve papel preponderante em Brasília ao conseguir a anulação, junto ao
Ministério da Saúde, do parágrafo do decreto e depois a aprovação de nova
lei que regulamentou a extinção desta farsa e infeliz equívoco.
O assunto foi também muito debatido em reuniões do GIÉDISE - Grupo
Informal de Estudos e Discussões Sobre Saúde Escolar, em São Paulo, do qual
fui coordenador e da Associação Paulista de Saúde Escolar – APSE, do qual
fui Vice-Presidente no biênio 1991/93. Participei, como um dos
representantes da Prefeitura Municipal de São Paulo, de reuniões periódicas
durante quase três anos do grupo coordenador do SIAME - Sistema Integrado
do Atendimento Médico do Escolar do Estado de São Paulo, multiprofissional
e multi-institucional. Em todas estas entidades procurava-se sempre incluir
pessoas de diversas profissões e ocupações advindas do Estado, da
Prefeitura, do ex-INPS e da USP, o que enriquecia os debates.
O Professor Paulo
Freire, Secretário da Educação na gestão Erundina do Município de São
Paulo, exerceu importante papel quando, sob sugestão da Dra. Ana Cecília
Lins Sucupira, Diretora recém-empossada do Departamento de Saúde Escolar,
baixou uma ordem de serviço suspendendo de vez por um ano os exames em
questão. Em sua justificativa foi categórico em afirmar que nossas crianças
da periferia faziam muito mais exercícios em suas corridas e brincadeiras
de bola e capotões do que a ginástica na escola. O recurso,
assim economizado com o pagamento dos médicos, foi remanejado para a
merenda dos alunos. Na Prefeitura e depois na rede estadual que acompanhou
a experiência da Capital, ganhei alguns inimigos entre estes colegas que
faturavam um dinheirinho extra por produtividade e entre os professores de
educação física que exigiam o atestado assinado pelo médico a fim de tirar
sua responsabilidade caso alguma criança falecesse durante a aula de
educação física. Erro grave constatado foi a dispensa da educação física em
crianças com bronquite asmática.
Com nosso convite, Professor Luzimar deu várias aulas em reuniões
regionais que fazíamos com diretores de escola, professores de educação
física e inspetores escolares, tanto da Prefeitura, como do Estado,
provando a importância da piscina na melhoria e eventual cura da asma. Sua
tese de doutoramento foi nesta área. Sob a orientação do Professor Dr.
Hélio Maciel, Diretor do Departamento de Saúde Escolar da PMSP e que
antecedeu à Dra. Ana Cecília, assinou-se um convênio pelo qual tanto as
crianças da Prefeitura como do Estado pudessem, em turnos, participar de
aulas periódicas especificas de natação para asmáticos na Escola Municipal
de Vila Mariana. Os professores de educação física interessados em serem lotados
nesta escola receberam treinamento com Prof. Luzimar na Escola de Educação
Física da USP na Cidade Universitária do Butantã. Casos mais graves, tanto
das escolas estaduais como das municipais, eram encaminhados diretamente
para as piscinas da USP sob supervisão direta do Prof. Luzimar.
Em 2002, ingressei na Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional
Rio Grande do Sul (Sobrames-RS), cujo presidente à época era Dr. Luiz Alberto
Fernandes Soares. Em 2003, por indicação do meu irmão Walter, ingressei na
Sobrames paulista e mais
recentemente, em 2012, na regional Ceará. Em 2005, me afastei
voluntariamente da Sobrames-SP, na qualidade de separatista e dissidente,
devido a incompatibilidades administrativas e pessoais. Neste interregno,
fundei, no dia 5 de maio de 2005, o Movimento Médico Paulista do Cafezinho
Literário – MMCL, na sede da Associação Paulista de Medicina em São Paulo,
durante as comemorações do quadragésimo aniversário da fundação da Sobrames
em nível nacional. Participei, ao longo dos anos, de vários congressos e
outros eventos na área de literatura e pediatria, inclusive um em
Buenos Aires, em 1977, de Saúde Escolar. Participei de diversas pesquisas
com Dr. Soares, tendo sido por ele agraciado com os títulos de Assessor
Literário-Cultural e Pesquisador Itinerante da Sobrames em nível nacional.
Organizei três eventos do
MMCL com uma equipe multiprofissional na Associação dos Médicos de
Santos-SP e colaboração indispensável do seu Presidente e meu amigo pessoal
o Ven. Dr. Arnaldo Duarte Lourenço (2008, 2009 e 2010) que tiveram como
Presidentes de Honra, respectivamente, Dra. Gessilda Porto Alegre Falcão,
R.I.P., (de Pelotas e Santos), Dr Rodolpho Civile (de São José dos Campos)
e Dra. Alitta Guimarães Costa Reis (de São Lourenço e São Gonçalo do
Sapucaí-MG). Com esta última, publiquei três livros denominados A presença literária do MMCL que
foram coletâneas englobando contos, crônicas, resenhas, comentários e
programações dos congressos da entidade. Venho publicando artigos e
comentários no blog da Sobrames-CE, em sua Antologia anual a partir de 2013,
e há alguns anos atrás em outros blogs, enfocando resumos
biográficos/históricos de vultos da importância de Dr Albert Schweitzer,
Drs. Alexis Carrel e Henry Drysdale Dakin, Prof. Dr. Luiz Hildebrando
Pereira da Silva, Prof. Dr. Cornélio Pedroso Rosenburg, Prof.Dr. Thomas
Maack, Prof. Dr. Erney Plessmann e outros. Muitos dos trabalhos
apresentados nestes eventos foram posteriormente publicados na Antologia Internacional Roda Mundo
(Itu - SP: Ottoni Editora, vários anos). Senti-me bastante honrado com o
convite para apresentar uma conferência a respeito de Alguns aspectos da vida e
obra do médico Albert Schweitzer, por quem tenho particular admiração, em
30 de outubro de 2013, no Espaço Cultural Dra. Nilza dos Reis Saraiva, na
cidade de Fortaleza-CE. O momento foi particularmente tocante por estar
inserido na Festa de Inauguração da Galeria de Fotos dos Ex-Presidentes da
Sobrames-CE, à qual sou filiado como Membro Honorário e Titular. Foi um
momento inesquecível e de grande emoção para mim.
Em S. Gonçalo do Sapucaí-MG foi fundado o Movimento Literário
Saberes e Sabores – MLSS, em moldes semelhantes ao do MMCL e da Sobrames. Fui
aquinhoado com o título de padrinho
do MLSS em dezembro de 2009. Nesta ocasião recebi um pelicano em vidro,
simbolizando o sacrifício de minha parte em viajar tanto para divulgar a
boa literatura nacional. Como se sabe, o pelicano dá suas próprias
entranhas para alimentar os filhotes recém-nascidos na época de escassez. Havia
sido agraciado, anteriormente, com a comenda da Academia Vicentina Frei Gaspar da Madre de Deus de S.
Vicente-SP, à qual também pertenço na qualidade de associado efetivo,
em março de 2009, no grau de comendador. Reza o certificado da
outorga da comenda: ... em
reconhecimento aos seus relevantes trabalhos dedicados à Literatura e
Cultura Nacional.
Foram-me outorgadas mais três comendas comemorativas por parte da
Academia Maceioense de Letras ao longo dos anos. Nenhuma das quatro
comendas foi comprada. Em 2006, fui integrado ao Quadro de Sócios
Honorários da Academia e dois anos depois elevado à categoria de
Membro Correspondente com direito à cadeira número 94. Escolhi como patrono
o meu amigo e colega Dr. José Afonso Tavares Filho (R.I.P.) de Osvaldo
Cruz-SP, falecido em 2007.
Dois outros grandes momentos de honraria, a mim feitas, foram
marcantes no sentido de me estimular a sempre prosseguir no caminho da boa
produção científica e literária. No dia 8 de julho de 1974, em uma reunião
administrativa havida na sede da Divisão Regional de Saúde de Campinas –
DRS-5, com a presença dos onze Diretores dos Distritos Sanitários e os
chefes das diversas seções administrativas da região, além do Diretor
Regional, Dr. Denir Zamariolli, e os inspetores/supervisores de especialidades,
recebi das mãos do Dr. Gil Celidônio Gomes dos Reis, supervisor de
Tisiologia, uma estatueta de uma águia alçando voo, como homenagem do grupo
desejando-me boa sorte na nova caminhada em direção à Universidade de São
Paulo. Em nome do grupo, Dr. Gil vaticinava pleno sucesso augurando a
dedicação que havia demonstrado anos a fio na Regional como
Inspetor/Supervisor da Área Materno-Infantil e como diretor de Estudos,
Programas e Planejamento.
Em 11 de outubro de 2014, recebi das mãos da Dra. Celina Corte
Pinheiro, Presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores –
Regional Ceará (Sobrames-CE), em plena reunião formal de encerramento do
exercício, significativa homenagem que muito me envaideceu. Na placa
comemorativa, que me entregou, consta:
A Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – Regional Ceará
(Sobrames-CE) presta sua homenagem e gratidão ao médico sobramista William
Moffitt Harris por sua dedicação e apoio à instituição. Fortaleza, 11 de
novembro de 2014. Celina Côrte Pinheiro, Presidente.
Tanto numa como na outra
cerimônia, recebi uma ovação em pé dos presentes.
Até a presente data, publiquei três livros, dois na língua
portuguesa e um em inglês. O livro (esgotado) Era Uma Vez Um Menino Travesso (São Paulo; Legnar Editora,
2004) trata de aventuras, traquinagens e vivências disciplinares no lar e
na escola além do amadurecimento cultural ao ingressar na Faculdade
de Medicina. Traz também um panegírico sobre meu grande e saudoso amigo
Prof. Dr. José Antonio Alves dos Santos (1909-1999) da Faculdade de
Saúde Pública, filho ilustre de Pindamonhangaba-SP e fundador do Museu
Emílio Ribas no antigo Desinfetório Municipal de São Paulo. O outro livro
no vernáculo é o Meu Manifesto
(Itu - SP: Ottoni Editora, 2009) em que relato os verdadeiros fatos que me
levaram a, voluntariamente, sair, na qualidade de separatista e dissidente,
da Sobrames-SP em 2005, com o objetivo precípuo de dirimir assertivas
injustas veiculadas tangentes à minha pessoa por aquele ramal. Esta
publicação foi distribuída à grande maioria dos membros da Sobrames-SP
antes da Jornada Nacional da Sobrames de São Paulo em setembro de
2009.
O livro em inglês Some Of The
Stories From The Paraguayan Chaco As Told By Knub-Knock-See-Hay (Walter
Harris) relata aventuras e dificuldades culturais de meu pai, conforme
narrações feitas a seus filhos e netos, à medida que foram crescendo,
referentes ao período de cinco anos, após a Primeira Guerra Mundial, na
década de 1920, quando viveu entre os índios Lengua, na margem oriental do Rio Paraguay. Um pequeno diário que nos deixou também
serviu de suporte para muitos fatos, lugares e datas em suas andanças. De
momento, está sendo gradativamente traduzido para o vernáculo.
Além de literatura, em toda a vida
de jovem adulto me interessei muito por música, sendo meus compositores
favoritos Haendel, Mozart, Mendelsohn, Beethoven, Bach e Pagannini. Estudei
violino com o spala da Orquestra
Sinfônica Municipal de São Paulo, Prof. José Giammarusti, a partir dos dez
anos de idade. Meu pai ficava exasperado comigo e ouviu do Sr. José a
seguinte máxima: - Sr. Walter,
tenha paciência. Todos podem aprender. A culpa é sempre do professor que
ainda não teria achado o jeito daquele aluno assimilar os novos
conhecimentos. Ouvi, anos mais tarde, a Profª. Dra. Ruth Sandoval
Marcondes da Faculdade de Saúde Pública da USP, fazer a mesma colocação em
outras palavras. Quando interno no curso Colegial do Arquidiocesano,
tive dois anos de aulas com o Professor Lealdo Tumiatti que me treinou com
o método de Hans Sitt até a nona posição. Foi, no entanto, somente
aos 17-18 anos de idade com meu amadurecimento biológico que passei a tocar
razoavelmente bem. Ao ingressar na Faculdade de Medicina, fui convidado a
fazer parte da Orquestra Universitária de Concertos, sob a regência do
Maestro León Kaniefsky onde muito aprendi e me aperfeiçoei.
Em minha pensão, perto da Faculdade, morava o maestro José Perdigão,
poli-instrumentista, que nos domingos à tarde, ele ao piano e eu ao
violino, apresentávamos, para os hóspedes da pensão e seus amigos, duetos
muitas vezes acompanhados pela cantora lírica do Municipal Rosa Buchner.
Sua voz ao entoar Casta Diva, Cuori Ingrato,
Una Furtiva Làcrima, O Sole Mio e Torna a Sorriento arrancava lágrimas
dos circunstantes. Durante quase três anos, Perdigão ao violoncelo, Prof.
Hilário Veiga de Carvalho, Catedrático de Medicina Legal da FMUSP e Diretor
do IML do HC à viola, Prof.Dr. Murillo Pacca Azevedo eminente
virologista do Instituto Adolfo Lutz e spala da Orquestra Universitária de Concertos e eu, como
segundo violino, nos reuníamos num quarteto informal ora na casa de um, ora
na casa de outro, semanalmente.
Enquanto isto corria nos tempos de pensão e primeiros anos da
Faculdade de Medicina, o Maestro Perdigão me incluiu entre os corais da
Igreja da Consolação e da Igreja do Calvário da Paróquia São Paulo da Cruz,
dos Religiosos Passionistas, da Praça Benedito Calixto, na Vila Madalena, onde
era organista e regente. Eu saía da Igreja Anglicana às pressas,
subia a Rua Aurora, Major Quedinho e, correndo, carregando o paletó e
gravata, chegava suado para não me atrasar no coral. Ele sabia do meu
programa e até foi uma vez comigo conhecer nossa igreja por dentro. Ficou
admirado de ver Mr. Fuller ao órgão e convidou meus pais para irem até
nossa pensão num domingo à tarde. Como eu havia contado a Papai que
Perdigão era capaz de tocar qualquer instrumento de sopro ou de cordas, ele
levou um Tonette para testá-lo. O
Perdigão nunca tinha visto aquela espécie de ocarina vertical de baquelite
e em menos de três minutos tocou Humoreske
de Dvörjak e Minueto de
Bocherinni (a música predileta de minha mãe). Já escrevi em outro lugar que
aqueles quatro anos na pensão de D. Tereza, na Rua João Moura, constam em
minha memória como sendo alguns dos mais felizes de minha vida.
Com o passar dos anos, por absoluta falta de tempo para manter a destreza
manual necessária para tocar o Souvenir
de Drdla ou a Campanella de
Pagannini ou qualquer um dos concertos da era clássica, deixei de
prosseguir nos meus estudos da música e tive de optar pelo exercício da
profissão de médico sanitarista e planejador de saúde. Evitei participar de
movimentos sociopolíticos durante minhas gestões nos cargos
administrativos, não me envolvendo em casos pessoais de funcionários a mim
confiados, procurando ir estritamente até os limites de minhas atribuições
definidas em lei. Granjeei simpatia e respeito por minha irrestrita e ilibada
honestidade e competência ao lidar com questões orçamentárias, tendo
apresentado em diversos congressos e publicado diversos trabalhos de minha
área.
Já com oitenta anos de idade e portador de algumas entidades
nosológicas que me dificultam a deambulação e vêm ocasionando sérios
impedimentos globais crônicos de saúde, quase não mais saio de casa. Venho
delegando a lideranças locais minhas funções de coordenação de tertúlias
literárias periódicas em algumas das treze cidades onde foi implantado o
MMCL. Nas reuniões até agora havidas, produziu-se perto de um milheiro e
meio de trabalhos, boa parte dos quais, repetidamente, saboreio pela
excelência de sua qualidade.
Sou casado com Maria Lúcia Nogueira de Camargo Harris, Diretora
aposentada de Escola Estadual de São Paulo, com quem tive quatro filhas e
um filho que perdemos num acidente de motocicleta em 1983, aos dezessete
anos de idade. O Dado sempre fez muita falta aos que o conheceram. Nossa
biblioteca em casa o homenageia com uma placa metálica em sua porta.
Já mencionei anteriormente nossa
primogênita Ana Lúcia, mãe de nosso netinho Alexandre que completou dez
anos de idade em março deste ano.
Maria Inês, a segunda filha, é
química, com doutorado e pós-doutorado na UNICAMP em toxicologia celular e
molecular de radicais livres, além de outro pós-doutorado no Centre National d' Études Nucleaires,
em Grenoble, na França, na área de lesões de ácidos nucleicos. Leciona em
várias faculdades por este Brasil afora e dá assessoria a várias empresas
de grande porte na área de cosméticos. É mãe de nossas netas mais velhas:
Carolina é advogada e trabalha no Rio Grande do Sul numa Procuradoria do
Estado; a Sabrina é arquiteta-engenheira e está passando, presentemente,
alguns anos dos Estados Unidos acompanhando seu marido Tiago que está fazendo
pesquisas em Pittsburgh. Já temos um bisnetinho americano, o Leonardo
com um ano de idade.
A terceira filha é a Isabel,
bióloga e paisagista, casada com o agrônomo economista rural Danilo há 25
anos. Estiveram já duas vezes nos Estados Unidos enquanto ele fazia suas
pesquisas de pós-graduação na Universidade de Purdue, em West Lafayette, no
noroeste perto da região dos Grandes Lagos, no Estado de Indiana.
Numa segunda estadia lá ficaram em Davis, na Califórnia. Aperfeiçoaram seu
inglês lá e a Isabel chegou a lecionar a língua em Viçosa e Sorocaba, onde
se instalaram há cerca de dez anos e onde o Danilo vem coordenando a
implantação do Campus Avançado da Universidade Federal de S. Carlos. Sua
filha Marília está terminando o Curso de Veterinária em animais de grande
porte em Lavras-MG.
Nossa filha caçula Maria Cecília
cursou Educação Física e leciona hidroginástica em dois dos melhores clubes
de Campinas, o Clube Fonte São Paulo e a Hípica, há vinte e poucos anos. É
casada com o Ubirajara, engenheiro químico formado na UNICAMP. São os pais
da Deborah que se forma este ano na Faculdade de Direito da PUC
de Campinas, na mesma escola onde seu tio-avô Dr. Jorge Nogueira Camargo
(R.I.P.), desembargador, se formou na primeira turma, em 1956.
Em minhas orações, sempre dou
graças a Deus por esta maravilhosa família que Ele me deu e que nunca me
causou desgosto algum. São todos muito carinhosos e zelosos para com
os pais, tios, sogros e avós.
AGRADECIMENTOS E CONCLUSÃO
Termino, ou melhor, interrompo, por enquanto, este relato,
desconfiando que já ultrapassei a barreira sugerida por um velho orador do
Senado Romano: "ESTO BREVIS ET PLACEBIS". Agradeço a minha amiga
Profª. Maria Lúcia Cunha Carneiro de São Lourenço-MG, pela paciência e
exatidão com que fez as correções da língua portuguesa numa das primeiras
versões deste texto há cerca de sete ou oito anos e da mesma forma,
antecipadamente, manifesto minha gratidão às colegas Dras. Ana Margarida
Rosenberg e Celina Corte Pinheiro pelo que puderem fazer neste sentido
nesta versão que ficou sendo cerca do triplo do tamanho da anterior.
Concluindo esta minha escrita,
vou parafrasear um poema denominado "Cumplicidade" que encontrei
no livro Devaneios, do meu amigo Prof. Dr. Murillo Tadeu de Campos, da
Academia Santista de Letras, chegado um pouco antes do Carnaval aqui em
casa:
"O reflexo dos meus
óculos
reflete minha cumplicidade
com o inda distante autor.
anseio que os meus leitores
para que padeçamos juntos,
no mesmo forte e intenso
ritmo."
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