Contar Clinicando
Introdução
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Dr. Aldino Muianga |
Por: Aldino Muianga
Na generalidade o
profissional de Saúde sempre acalentou o sonho de registar as suas experiências
com os pacientes; porém, numa perspectiva que se situasse fora do território
formal das unidades sanitárias. Aquelas experiências para-clínicas acumuladas
seriam – e é assim que nós desejamos que elas sejam – o fio condutor da relação
médico/paciente para o lado humano e social, porque cremos que, por detrás de cada
história existe sempre outra história. E é nessas “outras histórias” onde muitas
vezes achamos o bálsamo que no sub-consciente desanuvia os dramas do quotidiano,
onde se desintrincam os novelos da psicologia dos pacientes e fazem-nos perceber
quão complexa pode ser a natureza humana ou quanta grandeza se oculta numa
palavra, ou ainda em gestos simples como aqueles que vão discorrer ao longo das
narrativas nesta coluna.
Contar Clinicando
constitui uma digressão ao “outro lado” dos enfermos, espaço onde ele ou ela se
redescobre e reencontra, e onde o profissional de saúde reconquista a sua dimensão
de ser social.
Assim sendo, vamos então
contar clinicando.
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Contar
Clinicando:
«Os bebés que dormem no ventre das mães…»
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Dr. Helder Martins |
Por: Helder MARTINS
Publicado no informativo de dezembro/2013 da AMEAM (Associação dos Médicos Escritores e Artistas de Moçambique)
Esta publicação foi autorizada pelo autor, Prof. Helder Martins.
No longínquo ano de 1962,
quando era ainda um jovem médico, fui trabalhar em Marrocos. Fui colocado no
Hospital de Bou Izakarn, um Oásis no Sul de Marrocos, no Deserto do Saará, a
200Km da capital da Província de Agadir, que se situava junto da costa. Chegado
a Agadir, pedi ao Médico Chefe Provincial para me autorizar a ficar no Hospital
Provincial, algum tempo, para me familiarizar com o Sistema de Saúde marroquino
e com os hábitos culturais da população. Era o meu primeiro contacto com um
país, com o Islão como religião de Estado, o que condicionava muito a cultura
das populações e as suas percepções sobre a Saúde e a Doença. O Médico Chefe
Provincial concordou e acabei por ficar um mês.
Agadir era uma cidade que,
2 anos e meio antes, tinha sido devastada por um terrível terramoto. Só cerca de
25% da população sobreviveu. Quase todas as famílias tinham sido afectadas.
Aproveito fazer um
parêntesis para contar uma estória verídica que ocorreu durante o terramoto.
Este aconteceu pouco depois da meia-noite, duma noite de lua cheia. Um dos
edifícios mais afectados, situado mesmo no epicentro do terramoto, foi um hotel
de 12 andares situado perto da praia, que estava cheio. Ruiu completamente,
como um castelo de cartas, e todos os ocupantes (em grande parte turistas)
faleceram. Entre os hóspedes do hotel havia um jovem casal de franceses, recém-casados,
que passavam a lua-de-mel. Estava uma noite quente e como já indiquei de lua
cheia. Um pouco antes da meia-noite, a recém-casada achou que seria muito
romântico e idílico ter relações sexuais na praia, dentro de água. O marido
preferia o conforto da cama, mas ela insistiu no seu desejo e ele gentilmente
acedeu. Foram os únicos sobreviventes do hotel. No meio do seu delírio sexual
assistiram ao hotel a desmoronar-se. O noivo achou que daí em diante devia
ceder a todos os caprichos da esposa. Não era caso para menos...!
Voltando à minha
narrativa: Logo no primeiro dia, no Hospital de Agadir dou com uma médica portuguesa
minha amiga dos tempos de Faculdade, muito embora ela estivesse uns anos à
minha frente. Foi uma grande alegria. Ela era a Ginecologista do Hospital e foi
com ela que comecei a trabalhar. Ela deu-me as primeiras orientações e foi uma
ajuda extraordinária, para me fazer penetrar nos meandros daquela cultura e
daquele modo de vida.
Antes de iniciar a
consulta, a minha amiga explicou-me uma crença existente naquela população, de
que, durante a gravidez, os fetos podiam «adormecer
no ventre das mães e voltar a acordar mais tarde». As causas desse
adormecimento e posterior acordar estavam em relação com acontecimentos mais ou
menos felizes ou infelizes da vida do casal.
Uns meses mais tarde,
comecei a ler o Corão e percebi donde vinha essa crença. Na realidade o Corão é
um tratado de Direito. Maomé, o Profeta, ia fazendo justiça, à medida que os
casos lhe eram apresentados e o Corão contém toda essa jurisprudência. Uma vez,
confrontado com um caso complicado, de heranças de uma criança nascida muito
tempo depois do alegado pai ter morrido, Maomé, para evitar confusões, declarou
que a gravidez durava normalmente 9 meses, mas excepcionalmente, podia durar
mais, até 5 anos. Daí esta crença dos «bebés
que dormem nos ventres das mães». O certo é que essa crença resolve a vida
de muita gente.
Quando a minha amiga
começou a consulta, a primeira cliente era uma viúva, com uma gravidez de 4
meses, que dizia estar grávida do marido, falecido no terramoto, 2 anos e meio
antes. Com o desgosto da morte do pai, o feto teria ficado a dormir e agora
acordara de novo. Ela só não sabia porquê.
A minha amiga
explicou-lhe que, ela podia dar aquela explicação a quem quisesse, mas nós
médicos sabíamos que ela tinha tido relações sexuais, 4 meses atrás e, de
certeza, não tinha sido com o defunto marido. Mas não serviu de nada. Ela continuou
a jurar a pés juntos, que nunca tinha conhecido outro homem, senão o defunto
marido.
Durante a minha
actividade clínica de um ano em Marrocos e mais tarde de 2 anos na Argélia,
tive que fazer face a vários casos de «bebés
que dormem no ventre das mães». Essa crença arranjava sempre a vida de
alguém!