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Dra. Fátima Azevêdo - Médica e Membro da Sobrames-CE |
DE ENTRELINHAS E PEDRINHAS NO LAGO
Uma carta para um jovem
médico...Que responsabilidade imensa essa incumbência que me foi dada pelo
colega e amigo professor Álvaro Madeiro Leite. Principalmente depois do
belíssimo livro organizado por ele e pelo outro colega e amigo, professor João
Macedo. Por onde começar? O que e como dizer palavras a um jovem médico para me
fazer entender, torcendo para que essas minhas palavras encontrem eco no
coração desse jovem colega.
Vou começar falando das coisas mais
simples da vida. Porque um médico, ao contrário do que muitos possam pensar, é
um ser humano igual a qualquer outro. Tem alegrias, tristezas, sonhos,
decepções, medo, coragem, certezas e incertezas, dor de dente, dá espirros, adoece,
tem argueiro nos olhos, derrama café na roupa, tem fome, sede, cansaço, sono, ama,
desama, se apaixona, desapaixona, enfim um médico não passa de um ser humano
que escolheu (espera-se que tenha sido uma escolha e não uma imposição) cuidar
da saúde física, mental e espiritual de um alguém a quem se deu o nome de
paciente. Digo cuidar da saúde física, mental e espiritual porque se a saúde física
for bem cuidada e forem esquecidas as outras duas, a manutenção da primeira vai
ser muito difícil, porque uma depende da outra.
Falando ainda do meu ponto de vista
altamente pessoal do que eu entendo por médico, médico é um ser humano que
antes de tudo tem que saber sentir. Assim como o artista, o médico deveria ter
a sensibilidade aguçada, os sentimentos fluidos e a habilidade de ler além das
palavras ditas. O médico deveria desenvolver a habilidade de ler as palavras
não ditas. Ler o que está nas entrelinhas, assim como Clarice Lispector tanto
nos convida a fazer. Deveria aprender a linguagem do coração antes mesmo de
aprender a palpar um abdome, auscultar um pulmão ou solicitar um exame de
imagem ultra especializado. Para isso deveria procurar ler nos intervalos, alguns
autores. Em especial os que escrevem sobre a alma humana. Existem tantos, mas
eu adoraria saber que você, meu jovem colega, leu ou está lendo um pouco de
Clarice.
Para começar, um médico deveria também
ter os sentidos à flor da pele. Digo isso porque penso que ter os sentidos à
flor da pele ajuda a conectar o nosso próprio eu com a vida, com a própria
natureza. Olhar os pássaros, se maravilhar com um filhote em um ninho, ter
tempo para prestar atenção aos barulhos do alvorecer e do anoitecer, parar um
pouco para ouvir os sons da natureza, um riacho a correr, prestar atenção às
flores, às folhas caídas, olhar o tronco de uma velha árvore, os galhos secos
que um dia foram verdes...todo esse olhar curioso, atento, sensível e amoroso
ajuda-nos a perceber a real dimensão da vida.
Vou falando e não me apresentei a
vocês. Sou médica formada pela UFC, com residência e mestrado em Genética pela
FMRP-USP. Trabalho como docente da FAMED-UFC desde 1985 e durante todos esses
anos sempre achei que faltava alguma coisa muito importante no currículo do
ensino médico mas quando jovem, ainda
acadêmica, eu não sabia muito bem definir o que era. No entanto, desde os
tempos de estudante eu tinha plena consciência que escutar o paciente lhe
prestando atenção, tocar nesse paciente, perguntar por sua vida além da doença,
olhar em seus olhos, ter tempo para ouvi-lo, fazia uma enorme diferença. Não
apenas para ele o meu paciente, mas para mim também. Então uma das coisas que eu quero e preciso
falar para você meu jovem colega, é que os diplomas são realmente importantes,
não há como negar. As especializações, os mestrados e doutorados, as pesquisas,
os trabalhos publicados, são sim de grande importância para a formação do
profissional e enriquecem seu currículo. Mas, toda essa bagagem de conhecimento
sem a sensibilidade necessária ao exercício da profissão, sem a empatia, sem a compaixão, sem o amor
verdadeiro no coração, sem a paixão pelo que faz e pelo outro, a relação médico
x paciente e médico consigo mesmo não se dá satisfatoriamente. Vai sempre ficar
um vazio, um abismo, entre o nosso paciente e nós mesmos. Um vazio e um abismo
às vezes com sérias conseqüências tanto para quem nos procura precisando de
nossos cuidados, como para nós mesmos. O ser humano que procura atendimento
médico, na maioria das vezes já vem fragilizado, amedrontado, massacrado muitas
vezes por alguns atendimentos profissionais insatisfatórios, incompletos e que
por vezes o deixaram mais morto do que vivo. Não digo que são todos assim.
Existem as exceções. As inúmeras e benditas exceções.
Vou lhe contar um caso que aconteceu
com a avó de um de meus pacientes. Creio que você jamais esquecerá e poderá até
questionar a veracidade desse relato de tão surreal que parece. Mas creia, é a
pura verdade. Os nomes que citarei são fictícios, mas os personagens são bem
reais.
Dona Joaquina entrou no consultório
de um determinado colega e
--Minha senhora, qual o motivo de sua consulta? (perguntou o médico
sentado à sua mesa, fazendo um lanche sem ao menos levantar a mão para cumprimentá-la
e sem chamá-la pelo próprio nome).
--Doutor são os meus pés que estão doendo bastante e quando ando, sinto
muitas dores (Dona Joaquina tem joanetes em ambos os pés há vários anos e
agora aos 70 anos, o problema se intensificou).
--Levante para eu ver (disse o
doutor, ainda sentado em sua cadeira).
Dona
Joaquina prontamente levantou-se e apontou para seus pés.
--Minha senhora, não posso fazer nada, a senhora já veio prá mim
aleijada.
Consulta terminada, sai Dona
Joaquina do consultório com lágrimas nos olhos, depois de atendimento tão
desastroso e por que não dizer, desumano. E saiba que essa senhora foi atendida
em dia e hora marcada.
Vamos refletir...Imagine que Dona
Joaquina fosse pessoa amiga desse referido médico, o atendimento teria sido o
mesmo?! E se Dona Joaquina fosse avó desse
referido profissional, ele gostaria de saber que ela havia sido atendida
assim?! Então, a reflexão é para que o
médico lembre que sempre que tiver um paciente à sua frente, para ser atendido
por ele, que o médico veja naquela pessoa, um familiar seu. Alguém que poderia
ser seu pai, sua mãe, seu filho, seu irmão ou até mesmo você. Desse modo seria
bem difícil ou quase impossível fazer um mau atendimento. Este é um exercício
que eu aconselho o jovem médico a realizar,
caso ele ainda não traga consigo esse comportamento de forma natural.
Aprender e repetir bons exemplos é fácil, mas analisar um mau atendimento,
criticá-lo e mais tarde cuidar para não repeti-lo, é tarefa merecedora de toda
a atenção.
Os anos passam, o ardor e a paixão
dos primeiros anos de formado podem arrefecer. Isso não deveria ocorrer mas
pode acontecer sim. Exercer bem a medicina exige esforço, comprometimento,
desprendimento, amor, paixão e interesse, dentre muitos outros pré-requisitos.
Exercer bem a medicina é como ter casado com a paixão de sua vida e ao longo
dos anos, ver essa pessoa envelhecer, criar rugas, ficar às vezes de mau humor,
ficar cansada e mesmo assim, com toda a rotina desumana, como são todas as
rotinas, você se manter amoroso, dedicado, criativo e apaixonado. Porque a cada
dia o médico tem que se reinventar, tem que se recriar, tem que buscar maneiras
de se manter vivo, alegre e apaixonado pelo que faz, independente de qualquer
adversidade, independente das dificuldades que possa encontrar para desenvolver
suas habilidades profissionais e humanísticas. O médico precisa se encontrar
consigo mesmo e achar maneiras de chegar o mais próximo do que chamamos de
autoconhecimento. Chegar o mais próximo de sua alma, pois o paciente, as pessoas doentes, precisam de médicos
que possam entender suas doenças, tratar seus problemas médicos e acompanhá-las
durante o processo da doença. E para fazer esse percurso o médico precisa se
preparar, se cuidar, se conhecer, se gostar e gostar muito do outro e do que
faz.
Percebo que apesar de todas as descobertas científicas e
de todo o aparato tecnológico moderno para dar diagnósticos os mais raros
possíveis, parece que nós, os médicos, tememos nos aproximar dos pacientes. E
talvez essa aproximação do paciente é que faça toda a diferença na nossa
satisfação enquanto profissionais de saúde e na satisfação das pessoas que
atendemos enquanto pacientes. E esse temor de se aproximar de nosso paciente,
talvez tenha a ver com o nosso despreparo emocional e humanístico ao longo de décadas
e décadas de foco apenas no ensino da ciência esquecendo do ensino e do saber
humanístico que é inerente à formação do médico.
Lendo Gregório Marañon, ele nos aponta para as cinco
fontes do saber médico que segundo ele, são:
1. a clínica, ou seja, o conhecimento da realidade do
paciente
2. a anatomia patológica
3. a fisiologia tanto clínica quanto experimental
4. a etiologia
5. a literatura, a arte e a experiência extra-médica de
vida (tão importante quanto as outras fontes). E Marañon ainda nos diz mais: “quando o médico vê o enfermo como o homem que ele é, e não apenas só
como o estômago ou a supra renal que estão alteradas, por necessidade tem que
ter os olhos de especialista em vida humana, e estes são junto aos olhos dos
psicólogos de profissão, de pensadores e de artistas”.
Se você caro colega, se der ao trabalho de confrontar a carga horária de seu curso de graduação
entre disciplinas científicas e atividades artísticas, verá muito provavelmente
o resultado hilário destinado às artes e literatura, partes tão importantes na
formação médica que deveriam ser resgatas de alguma forma e o mais rapidamente
possível já que possibilitam o desenvolvimento de habilidades tão necessárias
ao exercício da nossa profissão.
E eu confesso que tenho um sonho. Sonho com o dia em que
nós médicos que nos dedicamos às questões de arte e literatura além das
questões científicas, não sejamos mais vistos como seres estranhos, seres diferentes. Eu sonho com o dia em que façam
parte de todo e qualquer atendimento médico, seja na periferia ou nos bairros
nobres da nossa terra, o abraço amigo, o
aperto de mão, a escuta atenta, o celular desligado e os olhos nos olhos.
E para você meu jovem colega, eu deixo a minha esperança
de que essas palavras saídas do meu coração de quase 30 anos de formada, possam
habitar o seu e assim como pedrinhas jogadas em um lago, se propagar docemente.
Com meu abraço fraterno,
Fátima Azevêdo
(publicado
na Rev.Saúde Criança Adolesc., 3(1): 104-106 Jan/Jun;2011)